-----------------------------------------------------------------------------------------------------------------

28/04/2018

Você conhece?

O dono do jogo (imagem AFP/SCANPIX, Malmö, 1960)



Domingo especial em dezembro de 1971. O Brasil ganhara a Copa do México ano e meio antes, com aquele show de futebol de uma das melhores seleções de todos os tempos. O clima daquela campanha memorável ainda dominava o país. Pelé, na plenitude do seu reinado, jogaria ali pela primeira vez, num amistoso contra um clube local.
A cidade estava em festa depois de dias de preparativos. Como o estádio era pequeno, colocaram “cadeiras especiais” atrás do gol – ingressos mais caros, disputados a tapa, mesmo com o risco de levar uma bolada na cara ou cair no bolo de jogadores nalguma trombada na região da linha de fundo.
O pai zeloso adorava aquele filho, que se vestiu a caráter com o uniforme do time local, em vermelho e branco, bandeirola com escudo à mão. Sentariam naquele lugar VIP no gramado, veriam o jogo quase jogando. Mal haviam terminado o almoço e já estavam de saída, apesar de o jogo da bola estar marcado para o finalzinho da tarde. Uma multidão rumaria para o estádio e era prudente chegar cedo, garantir lugar mesmo com ingresso caro à mão. Sabe-se lá!
O menino, impaciente, já estava na calçada. O tio querido chegou e cochichou alguma coisa em seu ouvido, sem que o pai percebesse, ocupado que estava em manobrar o carro para fora da garagem.
O pequeno torcedor era já leitor – gibis Disney, revistas Recreio, Placar e Realidade – e achou aquela conversa estranha, pois jamais vira qualquer referência ao que ouvira ali. Confiava demais no próprio tio, mas quis ter certeza:
– Tio, o senhor tem certeza?
– Claro. Pode perguntar a ele – respondeu o homem, convicto.
O carro partiu com o rádio ligado numa emissora que transmitiria o jogo, locutores, comentaristas e repórteres já em completo alvoroço. E o menino seguiu mais calado do que de costume, repassando na memória duas lendárias matérias de capa da Realidade, que o pai colecionava e ele havia lido com grande interesse – porque adorava Pelé.
A da edição número 1, cuja capa foi produzida na Argentina aproveitando uma visita do Santos para uma série de apresentações. Cenário montado, o repórter da Realidade Sérgio de Souza vira-se para Pelé e avisa:
– Vai começar, crioulo, abra o sorriso!
Diante daquele sorriso perfeito, espetacular – tempos sem politicamente correto nesse molde exagerado atual –, o fotógrafo portenho bateu as primeiras trinta e seis das noventa e duas poses do ensaio sem ter colocado o filme na câmera, de tão emocionado por estar cara a cara com o mais fotografado dos brasileiros.
O Negão que imortalizou a camisa 10 de todos nós aparecia com um busby na cabeça, um daqueles chapéus peludos usados pelos guardas da rainha Elizabeth. A matéria traduzia nossa esperança de ganhar o tri na Copa da Inglaterra. Lançada em abril de 1966, a revista esgotou em três dias e a capa foi reproduzida semanas depois em página inteira da renomada Paris Match.
Nosso time era ruim, Pelé foi caçado em campo por búlgaros e portugueses e nós sumimos em campo sem ele e com um Garrincha em indisfarçável decadência. Chegamos lá como favoritos e voltamos para casa mais cedo.
A da edição 58 trazia uma previsão de como seria Pelé aos 50 anos, grisalho, de bigode e com uma bola de futebol em cada mão. Na direita a famosa Carijó da Copa de 1970 – a primeira bola a ganhar um nome de batismo para uma copa e denominada oficialmente Telstar, para homenagear o satélite que permitiu a transmissão dos jogos do México para a Europa. Na esquerda uma pelota anônima recoberta de cédulas prevendo sua fortuna.
Pai e filho chegaram antes da uma da tarde às cercanias do pequeno estádio já animado pelo fluxo de torcedores, verão inclemente, o sol a pino. Enfrentaram a fila que saracoteava ligeira diante dos portões e em poucos minutos estavam acomodados atrás do gol, naquelas velhas cadeiras de ferro e flandre usadas nos bares (com marcas de cervejas no espaldar), traseiros pegando fogo pela quentura do sol acumulada no metal. Sem contar a visão tracejada pelo emaranhado da rede branca, alvíssima, que veriam balançar mais tarde. Desconfortos ínfimos ante a possibilidade de reverenciar o maior jogador de futebol de todos os tempos, o rei Pelé.
Mais uma hora e pouco e a delegação do Santos chegou. Alvoroço no estádio quase cheio, pois os jogadores desceram do ônibus, entraram pelo portão de serviço na rua dos fundos e cruzaram todo o campo. Passaram ao lado de pai e filho, o menino mesmerizado com a imagem do rei caminhando a poucos passos dele.
O pai, que frequentava o mundo do futebol local, conseguiu acesso ao ambiente dos vestiários. Diante do titã negro, o menino não perdeu tempo:
– Pelé, você conhece tio Tota?
O Negão, famoso pela forma carinhosa com que tratava qualquer fã, ainda mais as crianças, olhou aflito para o pai também aflito e, em resmungos disfarçados, perguntou baixinho a quem estava ao redor se Tota era algum jogador local.
Diante do aperreio e da negativa do pai do menino por meneio de cabeça, e do silêncio sepulcral que se instalou, o rei, desarmado por esse zagueiro imaginário invencível, ficou na marca do pênalti, parado naquela sua paradinha famosa. E como a resposta não saía, o menino, irritadíssimo, deu as costas e não deixou barato, foi saindo aos resmungos:
– Ah, você nem lembra de tio Tota!
Ali, o rei Pelé, acostumado a receber afago de reis, rainhas e maracatus de toda espécie, perdeu cetro e coroa no reino do futebol daquele menino decepcionado com seu ídolo. Ora, afinal era o velho e bom tio Tota. Como é que aquele sujeito não lembrou dele?
Até o meteórico Deodato Dantas, velho e folclórico fotógrafo sempre vestido em conjuntos cinzas ou azuis de mescla Renaux, que apesar da idade dava piques descomunais para não perder nenhum flagrante e agitava a torcida com suas correrias, sequer conseguiu apontar a câmera! O menino já estava longe e não quis saber de autógrafo ou foto de recordação.
O jogo encantou a torcida e o time local abriu o placar. A dez minutos do fim do primeiro tempo, Amorim estufou a rede na cara do menino e do seu pai, ambos emburrados com a cena do vestiário – cada qual com seu motivo. Mas festejaram. Nove minutos depois, o espetacular Edu balançou a rede do outro lado do campo e empatou o jogo. O menino desviou o olhar para a lateral quando Pelé passou a caminho do vestiário. E repetiu o gesto de desprezo quando as equipes retornaram para o segundo tempo.
Por azar, na troca de campo, o menino teve de conviver um segundo tempo inteiro com o Negão sempre rondando o gol diante do seu nariz. Foi difícil evitar cruzar o olhar. Foi difícil não se encantar com aquele jeito único de jogar bola. Foi difícil conviver com o perigo iminente de gol naqueles quarenta e cinco minutos finais, como se aquela trave estivesse sub judice, à mercê de uma sentença do rei.
E ela veio. O juiz deu um minuto de acréscimo, o suficiente para o Negão balançar a rede do time do menino e do pai, a bola tirando fino nas ventas dos dois depois de vencer o goleiro. O Santos venceu o jogo, 2x1. Resultado suficiente para aumentar o mau humor dos dois. A bandeirola com escudo do time local ficou esquecida no gramado, debaixo das cadeiras especiais de ferro e flandre. Quem lembra se havia alguma logomarca de cerveja?
Em casa, o pai quis saber do menino que diabo de história era aquela. O moleque contou em detalhes.
– Tá indo pra onde, meu filho?
– Ver o jogo do América com o Santos. Pelé vai jogar!
– Se você encontrar o Negão, diga que mandei um abraço pra ele.
– E você conhece Pelé, tio Tota?
– Claro! Fui eu que ensinei ele a jogar bola. No colégio. Ele nem levava muito jeito, mas insisti e ele terminou aprendendo.
– Onde foi isso?
– Em Caicó. A gente chamava ele de Charuto. Mas não chame de Charuto, pois ele não gosta, não.
Pelé experimentou, provavelmente pela primeira e única vez, o desinteresse de um menino que conseguiu a proeza de estar ao seu lado num ambiente puro do futebol. O pai e Deodato já foram embora daqui. O filho é homem de meia-idade especialista em fazer amigos e scotch. Pelé nem deve lembrar da “ingratidão” com quem lhe ensinou o ofício. E tio Tota segue tirando onda com a cara alheia. É da sua natureza.


Dedicado a:
Zé Marinho Lopes, o pai.
Jenner Marinho, o filho.
Antônio Lopes, tio Tota.
Deodato Dantas, o veloz.
Pelé, o deus da bola.


25/04/2018

OS LUSÍADAS – Uma viagem pelo tempo (II)

Retrato de Vasco da Gama em edição dos Lusíadas  (imagem Domingos Ferreira)


Domingos Ferreira
DESVELAMENTO
Moçambique foi o primeiro porto onde entraram. O Sultão os recebeu muito bem, por julgá-los muçulmanos, e prometeu-lhes dois práticos para levá-los até a Índia. Contudo, ao serem identificados como cristãos, foram obrigados a sair de lá, atirando contra a cidade.
A escala seguinte foi em Mombaça, poucos dias depois. Cautelosos, fundearam longe do porto e enviaram mensageiros à terra, onde a população moura se mostrou arredia. Ao contrário, o regente local lhes enviou boas-vindas, com muitas promessas. Vasco, temendo uma cilada, partiu para Melinde, a um dia de viagem.
Foram muito bem recebidos no novo porto, apesar de a população ser indiana muçulmana. A cidade era o principal centro comercial daquela costa, acostumada a conviver com estranhos. O rei de Melinde fez questão de vir a bordo, curioso sobre a viagem dos portugueses e interessado em negócios regulares com eles.
Camões aproveita a oportunidade para inserir, no diálogo entre o regente e Vasco, uma detalhada descrição da geografia europeia, acrescida de narrativa minuciosa da História de Portugal, desde as origens até aquele momento. Tudo isso temperado por uma interação com os deuses do Olimpo e figuras notáveis do Império Romano. Tal artifício, recorrente no texto, revela-se um dos principais esteios de “Os Lusíadas”, sublimando toda a fantástica obra do Poeta.
Em consequência da boa vontade do monarca, os navios foram bem reabastecidos e suspenderam alguns dias depois, com um prático experiente para levá-los até a Índia, e com a promessa de ali retornarem na viagem de regresso a Portugal.
Camões descreve a ocorrência de uma violenta tempestade, por obra de Baco, em seus últimos esforços para impedir o sucesso dos lusos. Porém, com nova ajuda de Vênus, os navios de Vasco, após a travessia do Índico, aportaram em Calicute a 20 de maio de 1498. Haviam decorrido dez meses desde a saída de Lisboa.
A sensação da chegada, sempre vivida intensamente por navegantes de qualquer latitude e época, é assim descrita: 

Tanto que à nova terra se chegaram,
Leves embarcações de pescadores     
Acharam, que o caminho lhe mostraram
De Calecu, onde eram moradores.
Para lá logo as proas se inclinaram
Porque esta era a cidade, das milhares
Do Malabar, melhor, onde vivia
        O Rei que a terra toda possuía.”

Canto VII, estrofe 16)

Um grupo de turistas aproximou-se do túmulo de Camões, com um guia falando baixo, em respeito ao ambiente severo do templo. O Almirante, arrancado de seus devaneios, afastou-se do poeta e retornou a Vasco da Gama, retomando o diálogo com o passado.
Os navios portugueses permaneceram cerca de três meses em Calicute. O maior impacto para os lusos foi o elevado grau de desenvolvimento da região, povoada por indianos e muçulmanos, em convivência pacífica. Os cristãos eram raros, apesar de os tripulantes terem, no início, confundido as imagens budistas com as de santos católicos. O sistema de castas também os chocou, apesar de virem de um país com imensas e consagradas diferenças sociais.
Da parte dos visitantes, ressalte-se a má condição dos marujos em seus poucos navios, duramente castigados pelo mar. As roupas gastas, o abatimento físico dos homens, os aparelhos dos mastros danificados eram visíveis da praia, apesar da distância dos navios ancorados, por inexistência de cais, regra geral na época.
Vasco da Gama foi à audiência com o Samorim, soberano da região do Malabar, incluindo as cidades de Cochin, Cananor e Chale. Acompanhou-o o Catual, governador de Calicute, que o recebeu com pompas, na praia da cidade. Era o momento mais importante da viagem.
Para tanto, sem banho havia meses, o navegador português vestiu sua grossa roupa cerimonial, com capa e chapéu de plumas, adequados ao clima europeu, e enfrentou o bárbaro calor da época pré-monções. Foi seguido pelos portugueses mais representativos e um mouro, chamado Monçaíde, nascido no Marrocos e morador da cidade, contratado como intérprete.
O encontro se deu no luxuoso palácio do Samorim. Gama iniciou o diálogo descrevendo-lhe o reino de Portugal, de onde viera, e exaltando os feitos do seu povo, inclusive a longa e penosa viagem até ali. Em seguida, em nome do Rei D. Manuel I, transmitiu ao Samorim o interesse de seu soberano em firmar laços de amizade e cooperação entre os reinos, incluindo eventual apoio militar.
Esses entendimentos deveriam ser coroados com intercâmbio comercial regular entre eles, pela rota recém-percorrida por seus navios. Finalmente, entregou ao indiano os presentes que D. Manuel I lhe enviara, os quais não impressionaram o regente, nem os membros da corte. Assim é descrito o momento histórico:

Tal embaxada dava o Capitão,
A quem o Rei gentio respondia
Que ver embaxadores de nação
Tão remota, grão glória recebia;
Mas neste caso a última tenção
Com os de seu conselho tomaria,
Informando-se certo de que era
O Rei e a gente e terra que dissera.

(Canto VII, estrofe 64)         

Os portugueses foram alojados no palácio e celebraram-se festejos em sua honra, noite adentro. Ali permaneceram nos dias seguintes, enquanto o Samorim aguardava as informações que mandara levantar a respeito das afirmativas e propostas de Gama.
Nesse processo, Monçaíde foi objeto de longos interrogatórios sobre suas origens. O Catual visitou os navios, fundeados a uma distância cautelosa da cidade, sob comando de Paulo da Gama. Ele foi recebido com trombetas e tiros de canhões, para impressionar os nativos. Travou-se, então, um longo diálogo entre o Catual e Paulo, quando este exaltou os feitos portugueses.
Esses fatos despertaram a curiosidade da população e a notícia da presença dos portugueses correu o Malabar. A nova alarmou também os mouros, operadores no Mar da Arábia, e deste para a África, Oriente Médio e Mediterrâneo, via Mar Vermelho e Golfo Pérsico. Já os comerciantes indianos viram nos lusos uma opção para escapar desse monopólio.
Os catuais das diversas cidades do Malabar, bem gratificados pelos navegadores locais, pressionaram o Samorim, em Calicute, para não aceitar qualquer negócio com os intrusos cristãos europeus. O mesmo ocorreu com os conselheiros do monarca e, com os sacerdotes hinduístas, vaticinando maus agouros para as tratativas com os portugueses. Camões mostra a difícil situação do Rei:

Diversos pareceres e contrários,
Ali se dão, segundo o que entendiam;
Astutas traições, enganos vários,
Perfídias, inventavam e teciam,”

(Canto VIII, estrofe 52)

O Samorim via algumas vantagens nas propostas lusas, e temia que o Catual da próspera Cochim, com pretensões à independência, pudesse se aproveitar delas. Então, protelou as decisões, retendo Vasco e seu cortejo no palácio. Em paralelo, o Catual de Calicute passou a criar dificuldades, de toda ordem, para os navios lusos.
Vasco e Paulo da Gama começaram a se comunicar por bilhetes. Preocupados em reabastecer os navios e obter amostras das cobiçadas especiarias, resolveram transportar, em seus próprios batéis, tapetes e tecidos portugueses para negociar no mercado geral da cidade. Tal medida despertou o interesse de comerciantes indianos, que passaram a freqüentar os navios.
Gama teve notícia de um comboio mouro que, em breve, chegaria a Calicute. Ele incluía navios armados e era oriundo de Jedá, no Mar Vermelho. Isso forçou Vasco a buscar um entendimento definitivo com o monarca. Camões deixa de lado o Olimpo e descreve a dura realidade, assim falando o Samorim:

Eu sou bem informado que a embaxada
Que de teu Rei me deste, que é fingida;
Porque nem tu tens Rei, nem pátria amada,
Mas vagabundo, vais passando a vida.

(Canto VIII, estrofe 62)

E critica os presentes recebidos, de pouco valor:
           
E, se de grandes Reinos poderosos
O teu Rei tem a régia majestade,
Que presentes me trazes valorosos,
Sinais de tua incógnita verdade?

(Canto VIII, estrofe 6)

Ao que responde Vasco da Gama:
       
Porque, se eu de rapinas só vivesse,
Undivago ou da pátria desterrado,
Como crês que tão longe me viesse
Buscar assento incógnito e apartado?
Por que esperanças ou por que interesse
Viria exprimentando o mar irado,
Os Antárticos frios, e os ardores
Que sofrem do Carneiro (2) os moradores?

(Canto VIII, estrofe 67)

Os desentendimentos causaram grande preocupação a Vasco, literalmente preso no palácio. Além disso, qualquer pedido de apoio ao Catual era condicionado a exigências para os navios fundearem mais perto da cidade, causando suspeitas da intenção de abordá-los.
Tal situação chegou a um impasse quando o Catual mandou prender os lusos no mercado e apreender-lhes as mercadorias. A reação de Paulo foi reter a bordo alguns comerciantes indianos de prestígio. Isso provocou a liberação de Vasco e acompanhantes do cativeiro no palácio, com um pedido de desculpas do Samorim. Seguiu-se a troca dos reféns e a devolução das mercadorias apreendidas. Não havia mais ambiente para permanecerem no porto.
(Continua)


22/04/2018

A vida é uma festa

Jean Dubuffet - Jazz


Ana Nunes
“Poetisa de pé quebrado”
de versos sem pé nem cabeça
espalhados em preto e branco
costurados aqui e ali
por um fio de água transparente.
De  pregos duros enfiados na carne mole
e aberta pela lâmina fria e afiada
afastada por asas de abelhas
de mel, ferrão e dores.
De sono escuro e sem sonhos
no rastro de pulseiras coloridas
e anéis pulsantes, boás esvoaçantes
e chapéus vermelhos de malandro.
De visita no mundo da Alice
uma xícara de chá com  gato cor de rosa
da cor do boá que ilude e persegue
e uma coisa doce que se mistura ao sangue
numa paz há muito visitada.
De volta ao nada escuro
num mergulho lento e pesado
com notas de rock oitenta
insistentes no ficar do fundo
vagas lembranças de útero materno
nos prenúncios de eternidade.
De depois de escuro sem estrela
de palco vazio e calado
de vôos rasantes e livres
sobre florestas verdes encantadas
agulhas de pinheiros tocando nuvem
um pouquinho de luz bem clara
revirando penas brancas macias.
De toque acolhedor de mãos quentinhas
um jejum de silêncio quebrado
Mozart, Bach e Chopin e Brahms
tocando em vozes conhecidas
no acordo de volta ao mundo.
De acordo com alegria e felicidade
sem choro ou ressentimento
de puro prazer de promessa cumprida
e o gastar do dia a dia.
A vida é uma festa.

Vou de Uber e volto de SAMU
Quer carona?

Rufino Tamayo - El bebedor feliz


19/04/2018

Os garotos da colina


 Représentation populaire d'un poulbot 
© France3/Culturebox


Moacir Pimentel
Quem chega a Montmartre pelo metrô da Place des Abbesses se depara com um carrossel todo decorado com rostos infantis, como esse que inaugura o post. Quem sobe a butte encontra os mesmos meninos, de olhos grandes, por todos os lados, sendo vendidos como cartazes e postais, imãs de geladeira e chaveiros, broches e copos e até decorando a fachada de um aconchegante restaurante chamado “Poulbot” em uma rua lateral também batizada com o mesmo nome na qual, aliás, mora o Museu Salvador Dali.
Quem não for absolutamente distraído a essa altura do passeio já terá perguntado ao ser humano ou ao guia turístico mais próximos :
“Mas afinal quem é esse menino? E quem é Poulbot?”
Répresentations populares de Poulbots (Pinterest)

A resposta será entusiasmada: Poulbot foi um estimadíssimo filho da colina, um pintor e ilustrador cujo tema preferido eram os moleques de rua, que entraram para a história como Les Petits Poulbots – Os Pequenos Poulbots.

E então você saberá que Francisque Poulbot, desde os primeiros cartazes e ilustrações e frisos que criou com essas figuras pueris, foi um benfeitor dos pirralhos desfavorecidos daquelas paragens. E sempre e tanto que se tornou o protagonista de mais uma das lendas do bairro, aquela que jura de pés juntos que, incitada pelos intelectuais e artistas e anarquistas de Montmartre, a população masculina nativa – leia meninos, jovens, homens e velhos - um belo dia de fin de siècle tirou dos baús os seus antigos uniformes militares da guerra de 1870, para defender assim, fantasiados de soldados, não mais a bela França de seus invasores prussianos, mas o bom Poulbot da Justiça que queria mandar encarcerá-lo por dívidas.
Sucede que movido pelo sofrimento das crianças pobres de Montmartre, o artista tomara dinheiro emprestado para construir, inaugurar e manter em funcionamento uma clínica médica e uma Associação das Crianças de Montmartre. E não tivera como, é claro, honrar tais dívidas.
Como acabou a presepada armada eu não sei mas em Montmartre o prezado Francisque continua sendo uma unanimidade e talvez os seus pequenos poulbots carreguem anexado um outro significado mais profundo.
Quem visita a colina, como já fizemos, no mes de outubro, durante a festa da colheita das uvas do vinhedo do bairro, entre muitas outras celebrações testemunha os desfiles: rapazes garbosos marchando pelas ladeiras do bairro, com seus uniformes de infantaria estilo 1813, aqueles usados na Batalha das Nações na cidade alemã de Leipzig entre o exército francês e os exércitos aliados da Rússia, Prússia, Áustria e Suécia. Parece que o fato de Napoleão ter perdido a guerra e dos aliados terem marchado triunfantes pelas ruas de Paris não tira em nada o brilho das comemorações (rsrs)
Só que logo atrás dessa infantaria, eis que aparece a ala dos meninos, dos descendentes dos pequenos poulbots, que também marcham armados pelas ruas da colina. E então é possível fazer uma melhor tradução: a garotada desfila fantasiada de “sans-culottes”, ou seja, usam orgulhosos em vez dos calções justos típicos da nobreza, o traje dos líderes das manifestações de rua, a vestimenta de trabalho, as calças de algodão grosseiro, o casaco curto e os sapatos de madeira do povo trabalhador.
Os pequenos poulbots simbolizam sim o menino de Montmartre: esperto, malicioso, brincalhão, zombeteiro, irreverente, indomável. Mas também representam um dos símbolos da França, um outro garoto corajoso fugido da tela A Liberdade Guiando o Povo, de Eugène Delacroix, na qual a Liberdade usa como eles, o barrete frígio vermelho, símbolo dos escravos libertados da antiguidade, com o qual a classe trabalhadora parisiense demonstrava seu ardor revolucionário.
Eugène Delacroix - Le 28 Juillet -  La Liberté guidant le peuple (1831)

Nessa imensa pintura de quase três metros e meio de largura que mora no Louvre, uma mulher conhecida como Marianne personifica a Liberdade e a França. O mais interessante sobre essa tela é que apesar de descrever uma cena do levante de 28 de julho de 1830, na realidade ela tornou-se a imagem definitiva da Revolução Francesa: o ápice da liberdade anárquica, violenta, libidinal.
Vemos aí uma Liberdade que expõe seus grandes seios redondos enquanto ergue uma bandeira com as cores francesas com um braço poderoso e, com a outra mão, carrega um fuzil com baioneta. Delacroix pintou a deusa de perfil como se inconsciente da loucura que a rodeava mas fez dela uma mulher do povo, de carne e osso, robusta e descalça, definitivamente viva.
E se você olhar com atenção verá que à direita da Liberdade um menino surge correndo com armas em ambas as mãos e um grito nos lábios: “Abaixo o Rei!” E saberá que essa história não pode ter acabado bem, que esse garoto deve ter sido, com certeza, um dos seiscentos mortos daquele dia de verão. Do lado esquerdo da Liberdade verá ainda um intelectual, talvez um poeta boêmio ou até mesmo pintor – quem sabe um auto retrato de Delacroix? - que saiu do seu sótão, deixando de lado seus versos e tintas para se juntar ao povo, usando seu chapéu alto e um fuzil que mal sabe manusear.
Na fumaça, ao fundo, vislumbra-se as torres da Notre Dame, reverenciada como ícone do romantismo francês por Victor Hugo em seu romance Notre Dame de Paris, mais conhecido como O Corcunda de Notre Dame, publicado em 1831. E então a gente se lembra que esse menino de Delacroix, por sua vez, pode ter inspirado outro personagem de Hugo, o Gavroche nas páginas de Os Miseráveis, aquele garoto que durante a batalha entre os revolucionários e o exército percorria cantando a área entre as trincheiras para recolher armas e munição e que, é claro, foi atingido e se despediu exceto nos refrões da música francesa e nas memórias de velhos leitores.
É esse o espírito do menino pintado por Francisque Poulbot tão exaustivamente: a luta pelas liberdades. Os intelectuais e os artistas e os meninos de rua lutando lado a lado, pelo maior dos valores, na opinião dos franceses.
Tanto é verídica a tradução que, após ter sido mandado das trincheiras para casa, devido a sérios problemas de saúde, logo nos primeiros dias da Primeira Guerra Mundial, Poulbot empunhou seus lápis e tintas e mandou os seus filhos adotivos para o campo de batalha, de vassouras em punho, a serviço do esforço de guerra. Entre 1914 e 1918 ele publicou centenas de desenhos patrióticos, que ajudavam a população e as tropas a sorrir em tempos muitos difíceis.
Francisque Poulbot  - Les Petits Poulbots se vont en guerre (série, entre 1914 e 1918)

Clonados pelos artistas de rua do presente, esses pivetes do passado ainda ajudam a colorir Montmartre.
Outro lendário filho e morador da colina também se preocupava com as criancinhas: um tal de Baron Pigeard, um construtor naval bem sucedido que, fascinado pelo mar, fundou a União Marítima de Montmartre onde ensinava os pirralhos a nadar de bruços sobre um banco de madeira.(rsrs)
Porém... dizem as más línguas que os artistas entravam e saíam dia, noite e madrugada da tal União Marítima. É que eles acreditavam que o ópio e o haxixe estimulavam as suas imaginações e parece que, além das ações beneméritas, o Barão também se ocupava daquelas do tráfico, abastecendo inclusive as “fumeries” vespertinas organizadas por Paulette Phillipi, vulgo a Manon, a mensageira da alegria, a musa dos dependentes, a fonte de drogas e de prazeres para os artistas de Montmartre.
Manon foi chamada de Opia nos escritos notáveis de Henri-Pierre Roché, foi musa de Paul Verlaine em uma de suas Ballades e amante do pintor Georges Braque. André Salmon, nos seus escritos, nos narra como o casal Pablo Picasso e Fernande Olivier, muito preocupados, conspiraram para separar o amigo Braque dessa perigosa namorada.
Na verdade os principais artistas do século XX passaram os primeiros anos de suas carreiras vivendo entre acrobatas, dançarinos, prostitutas e palhaços e criaram uma imagem tão exagerada do comportamento boêmio - pintando a noite toda, vestindo-se bizarramente, viajando no ópio, vadiando na cama de uma modelo diversa a cada noite etc, etc - que, um século mais tarde, nas nossas imaginações, esse ainda continua a ser o protótipo do estilo de vida dos artistas.
Mas as tardes preguiçosas e melodiosas de ópio chez Manon terminaram abruptamente, segundo os biógrafos de Pablo Picasso. Dizem eles que, no verão de 1905, Picasso estava de muito bom humor, doido para explorar e experimentar, inclusive os narcóticos, onipresentes na colônia de artistas onde não havia regras nem pausas, e que eram considerados como portas para novos mundos e visões.
Foi nessa época que o artista pintou a Família de Saltimbancos e, penso, talvez os entorpecentes consigam explicar a falta de tensão e movimento, os olhos embotados, o isolamento emocional das figuras dessa tela que descreve os membros do Circo Médrano de Montmartre.
Pablo Picasso - La famille de saltimbanques (1905)

O poeta Rainer Maria Rilke inspirou-se nessa pintura para escrever uma das suas Elegias, na qual poetiza os personagens de tinta como “viajantes sem morada fixa”, e à desolada e desértica paisagem de fundo como um “tapete esgarçado”, que lhe sugeria “a última solidão”, o isolamento do homem em um mundo incompreensível, “desde a infância até a morte”.
O certo é que, em uma bela noite, conforme os escritos de Fernande Olivier, a primeira das mulheres do toureiro, ela e Picasso e o casal Guillaume Apollinaire e Marie Laurencin se encontraram para um jantar cuja entrada foi haxixe e que terminou no estúdio do artista no Bateau Lavoir com os rapazes delirando depois de um mistura de éter e ópio. Fernande se recolheu aborrecida e Marie achou melhor voltar para casa para fazer companhia à senhora sua mãe e dormir em paz com o seu gato.
Enquanto isso seu namorado, o poeta Apollinaire, se divertia como nunca em um bordel imaginário e Picasso se encontrava perdido em um delírio e diante de um visão horrível: uma parede que não conseguia ultrapassar e que o impedia de avançar. Ele acordou Fernande fora de si, berrando que descobrira a fotografia, que não restava nada mais para ele aprender, que estava condenado a pintar sempre o mesmo e que queria se matar.
Logo em seguida, Picasso encontrou o corpo do pintor Karl-Heinz Wiegels, pendurado pelo pescoço de uma viga em seu estúdio, depois de ter exagerado a mão em outro cocktail de ópio, haxixe e éter. A galera criativa então abandonou as drogas e os rapazes juraram de pés juntos e solenemente que nunca mais tocariam em narcóticos. Só esqueceram de combinar com o Modigliani...


16/04/2018

O Budismo e a violência de cada dia

O Ladrão - Jakub Zito (imagem png.free)


Antonio Rocha
Nas grandes cidades brasileiras, infelizmente, a violência é muito grande. Vou-lhes contar como, através da prática do Budismo aceito a situação.
Em primeiro lugar, esclareço que aceitar não significa concordar. Claro que jamais vou concordar com qualquer grau de violência, mas sou obrigado a aceitar porque é algo mais forte do que eu.
Nas linhas que se seguem falo dos recursos que a Filosofia de Buddha me ensinou a encarar e enfrentar as adversidades da vida. Esclareço que não sou melhor do que ninguém, apenas pratico, vivencio e minha família também, ao longo de quarenta e quatro anos de Budismo agimos e pensamos assim e estamos muito felizes com isso.
Logo que casamos fomos, eu e Heloisa morar com os seus pais em uma casa grande no alto do bairro de Santa Teresa, RJ. Havia também um terreno grande com muitas bananeiras e jaqueiras e assim, no verão a meninada subia no muro que era baixo para pedir jaca.
No começo tínhamos um vira-lata, depois dois e três, eles se reproduziram e chegamos a dez. Mas não adiantava muito, só sabiam latir e claro, muitas vezes nos avisavam de pessoas estranhas no mato que não tinha cerca nem muro.
Ao longo de vinte anos moramos lá e criamos nossa filha, mas quando os sogros faleceram a casa foi vendida e passamos para o apartamento  onde residimos até hoje. Bem mais seguro.
O resumo da ópera é que nessas duas décadas fomos assaltados nove vezes. Em média, a cada três anos os ladrões iam lá e faziam a limpa. Na verdade, eram furtos, pois todas essas nove vezes não tinha ninguém em casa e cheguei a conclusão que os vira latas eram budistas e tinham compaixão pelos ladrões.
A primeira vez que aconteceu eu fiquei muito chateado, chegamos em casa no final da tarde e vimos a porta arrombada. Disse para minha esposa e filha ficarem na calçada, chamando o vizinho, enquanto eu entrava para verificar se ainda tinha algum meliante lá dentro, felizmente não tinha.
Só a casa revirada e sentimos falta da televisão e outros eletrodomésticos. Fiquei com muita raiva... trabalhava o mês todo e em uma tarde os larápios foram lá e fizeram a limpa. Mas, a quem reclamar? Só registrar a queixa na delegacia e me tornar mais um número na estatística.
A solução era, aos poucos, recomprarmos o que tinham levado. Então, procurei saber com um monge budista, nascido no Sri Lanka, já falecido, que se tornou amigo nosso, onde morava em um Templo próximo.
Ele ensinou que, de acordo com o Budismo tudo na vida é carma positivo ou negativo. Deste modo, que eu não ficasse com raiva, pois o nervosismo iria me fazer mal, não iria adiantar e que, na verdade, não foi furto, nós é que presenteamos os ladrões com os nossos pertences...
Isso mesmo, quando te tiram alguma coisa em um assalto ou é porque você está pagando alguma dívida de outras vidas, ou porque está graciosamente presenteando os ladrões.
No fundo achei divertida a questão. Estávamos presenteando os vagabundos e assim saldando os nossos débitos. O monge também lembrou que existe o carma coletivo e se o Rio de Janeiro é uma cidade violenta, é quase certo que, quem mora por aqui, sofra a ação deste carma coletivo.
Das outras vezes levava na flauta, na esportiva, mais uma vez estávamos presenteando os desocupados... uma vez eu estava no trabalho, a tarde, minha esposa e filha chegaram em casa e viram a porta arrombada novamente. Minha filha telefonou:
- Pai, roubaram todo o seu guarda-roupa, todas as suas roupas, você só está com a roupa do corpo.
Do outro lado da linha exclamei:
- Que maravilha filha, o melhor de tudo é que vocês estão inteiras.
Fui sincero na minha resposta, levaram minhas roupas, mas nós estávamos vivos, saudáveis.
Então aconteceu que no trabalho fizeram uma vaquinha e cada colega me dava uma peça de roupa de presente. E o monge, novamente, me ensinou:
- Olha que coisa boa, estes ladrões possibilitaram que várias pessoas fizessem caridade com você !
Finalmente vendemos a casa e senti que minhas experiências na área haviam terminado, e nunca mais fomos assaltados...
Depois conto outras parecidas no setor...