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30/03/2018

O serviço militar

Exercício - o soldado Francisco Bendl é o primeiro da fila da esquerda
 (fotografia Francisco Bendl)


Francisco Bendl
Indiscutivelmente o casamento é a maior experiência e compromisso assumido pelo ser humano, homem e mulher.
A constituição de uma família implica em uma série de questões que, se não forem bem estabelecidas, o fracasso é inevitável.
No entanto – e me refiro à minha época, pois hoje está muito diferente -, a melhor escola que havia para o homem e na sua tenra idade, que o ajudava definir o caráter e a personalidade do mancebo era o Exército.
Austero, disciplinador, tendo como base a hierarquia solidamente obedecida, quem vestiu uma farda na década de sessenta sabe muito bem o que quero dizer, pois sou do período que havia até o castigo físico, e por nada!
- Paga dez apoios -, dizia o mal humorado sargento para o soldado.
Por ter sido tão exageradamente usado este tipo de punição absolutamente injusta foi abolida em 71, pois a pior dessas ordens era o rolamento, ou seja, o recruta cair de lado e rolar no asfalto ou paralelepípedo ou chão de terra.
Afora o polichinelo, canguru – difícil, pois havia o salto para cima, a descida com uma das pernas dobradas, enquanto os braços e mãos ficavam atrás da cabeça, na nuca, e assim durante a quantidade que o tarado do superior hierárquico decidisse!
A educação física era outro tormento, pois além dos exercícios físicos havia depois a corrida de dez a doze quilômetros, que nos fazia chegar no quartel exaustos, literalmente com a língua de fora.
Em compensação, o soldado que servia na Polícia do Exército, que foi o meu caso, e dei baixa como Cabo, a sua farda era diferenciada das demais guarnições do Exército.
A túnica de passeio tinha a sua cor mais clara do que a calça, além de ser trespassada pelo cinto de guarnição, um alamar branco no lado esquerdo, na manga do mesmo lado o dístico do III Exército e do outro da PE.
No bolso, um apito (lembro que a PE também fazia o controle de trânsito) e, no outro, em metal, o distintivo da guarnição – eu ainda pertenci à 6ª Cia de Pol Ex, e depois como III Batalhão de Pol Ex!
Coturnos brilhantes, e vários tipos de se amarrar os cadarços.

O Cabo Bendl (foto Francisco Bendl)

Logo, quando saímos às ruas era inevitável obtermos os olhares das gurias, e uma certa inveja da rapaziada, em face de que nos julgávamos super homens, superiores ao tempo, ao frio, à chuva, ao calor, ao cansaço!

Menos quando estávamos nos braços das namoradas, então o “Sansão” ronronava como um gato e se enroscava na guria como se fosse um cachorro em um cobertor velho!
O soldado tinha duas obsessões consigo durante o tempo que servisse, fosse ele anos a fio quando saísse do quartel após o expediente, invariavelmente às cinco da tarde:
Alimentar-se bem, e conhecer (biblicamente) as namoradas!
A comida servida na cantina não que fosse ruim, não, simplesmente era intragável!
Ora, ficar em jejum da noite anterior após o jantar até o final da tarde do dia seguinte e com a movimentação física que tínhamos, a fome era tanta que, em casa, se comia o que havia, para a felicidade das mães, que sempre reclamavam do filho que não comia nada!
E, após o lauto jantar, mesmo que fosse o trivial feijão com arroz, a pesquisa e experiências anatômicas com relação ao namoro, em face de jovens com dezoito a dezenove anos, com muita vontade de conhecer aquelas que o acompanhavam.
Alguns voltavam para o quartel no dia seguinte mais cansados do que quando saíam no dia anterior, mas a satisfação e a calma sobrepujavam outra jornada de física, aprendizado sobre armas, ordem unida, stand de tiros e instruções variadas.
Claro, tínhamos também as datas comemorativas quando usávamos a farda de gala, e controlávamos o trânsito e o balizamento do público no dia 7 de setembro, data onde ampliávamos significativamente o número de admiradoras!
Invariavelmente após esta festividade, no dia seguinte o quartel recebia centenas de ligações das gurias querendo falar com o Capitão fulano de tal!
Não havia no mundo uma guarnição com tantos capitães e nenhum soldado, cabo ou sargento, somente oficial e, capitão!
A função de telefonista era compartilhada entre os três pelotões de serviço, denominados de Infantaria/Polícia.
Cada grupamento escolhia o telefonista, que dividia esta tarefa com a Patrulha, isto é, quando precisávamos sair de viatura para atendermos uma ocorrência onde havia um militar envolvido, o telefonista ia junto, aumentando o efetivo de um sargento, cabo e dois soldados.
Pois este telefonista era também muito esperto.
Precisava ter uma boa voz, atender com educação, haja vista esposas de oficiais ligarem volta e meia – aviso que sequer se imaginava o que seria um celular -, e ser rápido em encontrar a pessoa solicitada pela ligação.
Na razão direta que as namoradas eventuais pediam pelo “capitão”, o sagaz telefonista se intitulava superior ao dito cujo, apresentando-se como major(!), e roubava a namorada do oficial subalterno como são denominados o Aspirante a Oficial, Segundo e Primeiro Tenente e o Capitão.
Major, Tenente-Coronel e Coronel são Oficiais Superiores.
A encrenca acontecia quando o “capitão” era passado para trás pelo telefonista, então havia o desforço pessoal em pleno pátio do quartel, cada um dos contendores com luvas de boxe, três rounds e, quem vencesse, o troféu era a namorada conquistada sorrateiramente.
E o pau pegava prá valer.
Logo, desde o início se aprendia que para se conquistar alguém era necessário muita luta, literalmente, mas valia a pena para o vitorioso, e uma via crucis para o derrotado, que era alvo de chacotas pela surra levada e ter perdido a sua amada!
Uma das maiores alegrias do milico era quando o sargenteante (Primeiro Sargento) o escalava para a Patrulha, enquanto a maior tristeza e decepção era estar no quadro de informações designado para ser plantão do banheiro!
A patrulha significava sair do quartel quando havia ocorrências, liberdade, o soldado era uma autoridade, pois usava uma pistola Colt .45 e um cassetete de borracha, mais tarde abolido.
A presença de um soldado da PE impressionava pela altura e envergadura, pois volta e meia era obrigado a usar da força para conter ânimos mais exaltados.
No banheiro, enquanto isso, as latrinas eram turcas, ou seja, não havia o vaso sanitário, apenas a colocação dos pés!
Pois o meliante – isso mesmo, meliante -, que almoçara algo que não tinha sido compatível com seu estômago de avestruz, demonstrava este litígio borrando o local que usava, e lá ia o plantão do banheiro limpar a sujeira feita pelo delinquente!
O mais divertido – fedorento, mas caíamos na gargalhada – era quando o soldado com pressa para se aliviar, saía depois com os calcanhares do coturno ... isso mesmo, ambos impregnados com o efeito de uma péssima refeição!
Automaticamente o seu nome de guerra era alterado na hora para... “***ão”.
Na verdade, o plantão dos banheiros era uma punição para os “manqueiras”, uma turma que detestava o serviço militar - lembro que na minha época servir as FFAA era obrigatório -, que não se esforçava, não demonstrava vibração por estar servindo.
Outra função muito disputada era ser Dia-sala, em outras palavras, estafeta.
Capa pelotão tinha designado então, o seu telefonista e dia-sala, cuja função era pagar as contas do pessoal de serviço, que ficaria no quartel 24 horas, sem sair para nada!
Mas, nessas andanças, corria solto a paquera, uma matiné (cinema à tarde) na sessão das duas, e chegar no quartel antes do fim do expediente.
Eu sempre fui designado para duas delas:
Patrulha e telefonista.
Certa feita, me mandaram ser plantão do banheiro.
Havia um local onde o pessoal encontrava as latrinas uma ao lado da outra, em um total de oito.
Enquanto a PE era companhia, o seu efetivo era de cem homens, logo, oito latrinas para cabos e soldados comportava um que outro apressado.
Pois bem, sem divisórias, quando se “encontravam” dois ou três na hora “H”, as gargalhadas eram naturais, em razão do risco de se sair borrado ou, então, o mais grave e insuportável, deixar o plantão em maus lençóis, com as paredes respingadas de...!!!
Sabendo eu dessas “brincadeiras”, usei de um artifício que me ocasionou OITO DIAS DE DETENÇÃO, isto é, sem sair do quartel, mesmo quando na minha folga!
Um martírio, uma tortura!
Mas, querendo dar uma de sabido, de esperto, rasguei um lençol e entupi as latrinas.
Quem as usasse e puxasse a descarga, o buraco enviava para cima os dejetos e respingava até as pernas do necessitado!
Tal “providência” não só inverteria a brincadeira com o plantão, como impediria de ser usadas, logo, uma bela folga!
No entanto, no Exército, aquilo que pensamos é o contrário.
As latrinas não ficariam um dia sem uso, impossível! E se um pelotão (trinta soldados) comesse a vaca atolada (carne com mandioca) da cantina no almoço e tivesse um revertério??!!
Foi designado o grupo especializado nesse tipo de problema, permanentemente à disposição para resolver entupimentos, questões hidráulicas e elétricas.
Sem muitos esforços e sem quebrar o piso e a louça das latrinas, os trapos foram sendo sugados.
A cada um deles tirado, eu ia sendo olhado com deboche e maneios de cabeças de um lado para outro.
No dia seguinte, na parada da saída do quartel à tarde, o boletim era lido.
Primeira parte, segunda, terceira,  a quarta parte era Justiça e Disciplina.
- Soldado 108, Bendl, punido com oito dias de detenção por entupir as latrinas. Também terá de pagar um lençol que usou para suas artimanhas - a voz do sargenteante vibrava no alto falante da guarnição para quem quisesse ouvir!
Enfim, gosto de escrever sobre os quase quatro anos que fiquei na PE, pois uma escola para homens, que contribuía poderosamente para a formação desta pessoa, que entrara criança, praticamente, e saía adulto!
Nesse meio tempo, de trabalho duro, havia sempre as brincadeiras, os acontecimentos muito divertidos, que deixavam o alvo das chacotas com problemas, se flagrado por qualquer superior, principalmente o Cabo!
Havia o Cabo da Guarda, o Cabo de Dia, o Cabo da Patrulha.
Aquele que ficava na Guarda era o que recebia as pessoas, colocava os soldados que estavam de serviço e designados àquela função em forma quando chegasse qualquer superior, a entrada e saída da Unidade. Quando se tratava do comandante chegar, até o corneteiro era chamado para avisar que o comandante estava presente, pois as ordens são dadas por corneta.
O comandante descia do carro antes do portão, entrava caminhando no quartel com a guarda perfilada e batendo continência, e o corneteiro entoando as notas respectivas.
Incansável nas brincadeiras, o soldado que mais se divertia era também o mais corajoso, em razão de que, descoberto nesta sua ousadia, a punição seria dura.
Eu e mais dois colegas, tão absurdamente insensatos, decidimos que dois de nós entrariam correndo pelo Corpo da Guarda, berrando:
- O comandante chegou, o comandante chegou!
Nesse meio tempo, o sargento colocaria em forma a guarda, o corneteiro já entoando as primeiras notas, e eu entraria com toda a pompa e circunstância quartel adentro!
Eu não imaginava - inexperiente, ainda -, como poderia ser a reação do Sargento da Guarda, e do próprio comandante da Unidade, se ele estivesse no quartel!
Ora, ouvir o som da corneta avisando da sua chegada com o comandante já presente, pularia da cadeira para ver quem estaria lhe tomando o comando!!
Pois bem:
O Nestor e o Zeno entraram no quartel conforme combinado e, em seguida, eu apareço com cara de brabo, sério, olhando de cima abaixo os soldados em forma, e o sargento com os olhos esbugalhados de terror e ódio!
Logo após o Corpo da Guarda, no quartel da Praça do Portão que foi depois demolido, ficava a cadeia da Unidade.
Ali eram presos os que eram flagrados em crimes, pois os militares também cometem seus delitos, permanecendo até o julgamento pelo Tribunal Militar, quando eram escoltados até o local.
Pois na medida que eu ia entrando, percebi que o Sargento indicara que quatro soldados da guarda me acompanhassem... até a cadeia!
A risada foi geral, pois o “comandante” havia transferido o Posto de Comando para a... prisão!
Fiquei um dia preso, incluindo a noite, claro.
Pela manhã, em tom de deboche, e antes de a Guarda ser rendida, ou seja, trocada por novos soldados, o Sargento que me prendera, pergunta:
- Bendl, queres sair ao toque de corneta e guarda formada ou em silêncio!?
Pois peguei a fama de rebelde, haja vista que um das minhas maiores proezas foi espraiada para fora dos limites da PE!
Como citei acima, a farda nossa era diferente, mais bonita, mais vistosa, com mais distintivos, digamos assim.
Pois eu achava que pela importância de ser PE havia poucas “condecorações” na farda. Então tratei de adquirir os emblemas em metal prateado de paraquedista, artilharia antiaérea (?!) e batedor, aqueles que tripulavam as motos Harley Davidson, acompanhando autoridades.
Coloquei-as no peito da gandola de passeio, e enfrentei os olhares de admiração e reverência das gurias, e inveja e raiva do homaredo!
Pelo fato de eu não poder usá-las, pois nunca havia feito os cursos para ostentá-las, inverno ou verão e eu saía do quartel de jaqueta!
Era entrar no ônibus ou bonde – eles saíram de circulação em 74, em Porto Alegre – e tirava o agasalho, mostrando um Cabo extraordinariamente condecorado, reluzindo de metais e distintivos na farda!
E como eu gostava de desfilar pela Rua da Praia, a mais famosa da capital gaúcha, e ser olhado pelo pessoal!
Algumas pessoas me paravam para perguntar como que eu havia ganho tantas medalhas, no que eu respondia que fora em combate, quando fui assistente militar no Vietnã!!!!
Eu cheguei a ter uma agenda pequena, de bolso, com os endereços das moças que haviam se interessado pelo belo e valente militar!!!
Mas, certa feita sou descoberto em pleno desfile por um tenente da... PE!
Paralisado, gelado, pensando no que eu ia inventar para justificar o uso indevido dos galardões, ele fulmina em plena rua:
- Cabo Bendl, eu fiz a AMAN, tenho vários cursos, e não tenho esta quantidade de emblemas que tens na tua farda. Amanhã, pela manhã, quero que tu entres em forma na frente da tropa, e explique cada uma delas como as mereceste!
Durante à noite, pensei em como fugir dessa suprema humilhação:
Desde adoecer, ser atropelado, doar três litros de sangue e baixar hospital por fraqueza, a morte do irmão, um ataque do coração do pai, a casa que pegou fogo, a mãe que cortou a mão cozinhando...
As horas passavam e nada.
Morto por ter cão, morto por não tê-lo.
Pela manhã, tomei banho, fiz a barba e passei algodão no rosto, pois se ficasse um fiapo o soldado era punido, passei “Brasso” nas fivelas dos cintos, coturnos brilhando, empertigado, fui para o quartel.
A cada passo que eu dava entrando na Unidade, eu ouvia os mais diversos comentários, sendo que um deles era comum:
- O Cabo Bendl ficou louco!
A tropa em forma, e eu ao lado do Staff do comandante!
Termina a apresentação dos tenentes apresentando seus pelotões para o comandante, este se vira para mim e pergunta:
- Bendl, agora quero que tu nos relates como conquistaste tantos galardões, que nem eu, que sou comandante, os tenho!
Olhei para o de paraquedista, e disse:
- Este eu o tenho porque caí da cama enrolado no lençol. Pensei, e decidi ser paraquedista, porém comprei o emblema antes do tempo.
A risada foi uníssona.
- O segundo, Bendl, de artilharia antiaérea, que droga é esta se somos uma tropa terrena??!!
Na razão direta que eu já estava mesmo desterrado, preso, quiçá fuzilado, segui no mesmo rumo:
- O símbolo de artilharia antiaérea se deve à flatulência no alojamento, onde dormem quarenta soldados! O bombardeio é geral, inclusive com disputas quanto ao petardo com mais barulho!
Nessas alturas, até o comandante ria das minhas explicações e justificativas.
- Muito bem, Bendl, antes que eu decida o teu destino – imaginei que eu seria transferido para a prisão de Macapá -, me diz agora o motivo do emblema de batedor?
Engoli em seco, e disparei:
- Comandante, no dia que eu fosse flagrado ostentando esses distintivos, eu pegaria uma de nossas motos e sairia correndo do quartel – e imitei uma moto saindo em desabalada carreira!
Jamais a tropa tinha tido uma formatura como aquela, de pura diversão, e protagonizada por um palhaço, corajoso, vá lá, mas um insensato.
Resumo da ópera:
Fui “condenado” naquele dia a lavar as cem bandejas de metal onde servem as refeições, de cada militar da PE!
Saliento que não havia máquina para isso, pois cada um era responsável pela sua bandeja, de lavá-la e guardá-la limpa!
Meu apelido ficou até hoje como Cabo-General, e quando me encontro com meus camaradas que serviram comigo é inevitável eu rememorar este episódio.
Por falar nisso, entenderam agora por que jamais lavei uma louça depois de casado?
Já escrevi a respeito nesse extraordinário blog e oásis cultural!


28/03/2018

Os Mitos e Delírios de Cada Um

Treinamento de Rapel - 3° GB - Londrina - PR. (fotografia  Jônatas B. Theodoro)


Antonio Carlos Rocha
Cada um constrói a sua realidade a partir de suas escolhas. Claro que estas escolhas são influenciadas pelo ambiente familiar, pela educação e até pela fofoca dos vizinhos, o que é lamentável.
Essa história aconteceu nos anos 90. Eu estudava Teologia e fazia parte do Estágio, o treinamento em “Aconselhamento”.
Bela tarde, apareceu um rapaz na casa dos vinte anos e pediu para conversar. Procuramos uma sala vazia, liguei o ar, fechei a porta e sentamos frente a frente, com uma escrivaninha no meio, onde fui anotando alguns dados. Comecei:
- Fique à vontade amigo, abra o seu coração.
Então ele desabou num choro que eu não via nem ouvia há muito tempo.
Deixei-o chorar bastante, só me levantei, fui no banheirinho, peguei o rolo de papel higiênico para ele assoar o nariz e fiquei calado. Logo depois começou a falar:
- É que eu estou desempregado há vários meses. E as pessoas na minha casa, na minha vizinhança pensam que eu passei no concurso do Bombeiro. Todo dia  pela manhã eu saio de casa, finjo que vou para o quartel, volto no final da tarde, peço dinheiro emprestado ao meu para as passagens, e digo que quando receber vou quitar a dívida...
- Mas como é isso, explique melhor.
- Eu estudei até o ensino médio. Mas a minha família é um caso sério. Eles acham que eu sou gênio, que sou um cara inteligentíssimo, não sou, sou uma pessoa comum.
- E a história do bombeiro?
- Eu fiz a prova, pedi dinheiro emprestado para me inscrever. Mas não passei, mas a minha mulher embarcou na da minha família e mesmo antes de saírem os resultados ele começaram a comemorar e a espalhar para a vizinhança que eu tinha sido aprovado.
- E por que você não disse a verdade?
- Eu tentei, mas eles me sufocam, é como se eles já estivessem percebendo a realidade. E ficam em torno de mim brincando com elogios e eu não tenho forças para dizer.
- Mas eles não sabem que ao ser aprovado para o bombeiro, o recruta fica no começo vários dias internos, até semanas, em exercícios e quando vem para casa, já volta com a farda?
- O problema é que a minha família vive de aparências, fazendo concorrências com os vizinhos para ostentar quem está melhor de vida. E, na verdade, nós estamos pior. Eles não querem aceitar a realidade...
- Bem amigo, a solução é simples, mas dolorosa, falar a verdade.
- Vai ser o fim do mundo, a decepção geral...
- Olha só, hoje, quando você chegar em casa, reúna a família, não deixe as brincadeiras e elogios te dispersarem, seja firme pela primeira vez. E fale tudo. Todo mundo vai chorar, mas vai ser melhor, será o começo de uma vida de humildade, sem esta bobagem da concorrência, da vaidade, da tolice entre vizinhos.
- Vou morrer de vergonha.
- Mas vai renascer para uma vida de verdades, sem mentiras que estão te prejudicando. E no dia seguinte procure um emprego de fato, você tem ensino médio, as redes de supermercado estão constantemente admitindo. É só encarar, ter força, ânimo, vigor. Seja você e não fique na aba do pai ou da esposa. Todo trabalho ético é nobre, logo, qual é o problema?
- Obrigado!
Levantamo-nos, apertei a sua mão e respondi:
- Boa sorte ! 
Nunca mais vi esse jovem. Espero que tenha acertado o passo na vida...


26/03/2018

Os cartazistas da colina

fotografia Moacir Pimentel


Moacir Pimentel
Se não me puxarem pelas orelhas eu sou capaz de passar uma tarde inteira em Montmartre, diante de uma coleção de posters como essa que inaugura o post. Porque a história do bairro também é narrada através desses cartazes que os artistas nativos do século XIX transformaram em uma forma de arte e que hoje enfeitam as calçadas e as vitrines, superpovoam as galerias de arte, livrarias e sebos e ainda sobrevivem colados nos postes, paredes e telefones públicos do bairro. Cada um desses posters daria uma longa conversa.
Tais cartazes começaram a aparecer assim luminosos e coloridos em 1869, quando Jules Chéret passou a cria-los com novos e simples padrões de design. Chéret estudou Belas Artes enquanto ainda trabalhava como aprendiz de litógrafo e pode-se detectar em seu desenho alguma semelhança com obras dos pintores Fragonard e Watteau. E essa é a razão pela qual durante muito tempo ele foi o rei dos posters.
Jules Cheret (1891)

Não porque suas criações merecessem os maiores prêmios da publicidade, mas porque seus cartazes, mais de mil deles, são obras de arte. Em vez de reinterpretar os grandes temas do passado criando grandes telas para os salões suntuosos ele encontrou um novo lugar para seu trabalho: as ruas de uma Paris recentemente reestruturada pelo Barão Haussmann com seus amplos bulevares e cruzamentos. Nas paredes austeras da nova cidade os cartazes de Chéret apareceram como explosões de cores, uma nova e vital forma de arte que falava o idioma popular em seus anúncios de coisas efêmeras, como os bailes, peças teatrais, circos e feiras.
No primeiro cartaz da montagem abaixo, de nome Bal Valentino, Chéret estabeleceu a qualidade dinâmica de seu trabalho. As figuras dançantes de um palhaço abraçado a duas garotas surgem como se fosse uma só e esse efeito é acentuado pela palavra Valentino sendo sugerida em 3-D. Dizem que a titulação e todas as demais letras foram adicionadas mais tarde, o que reforça a convicção de que ele era principalmente um muralista e não um homem de propaganda.
Jules Chéret (1869) /  Jules Cheret (1892)

Mas o poster do Bal Valentino é um design fora da curva da obra desse artista, em comparação com alguns de seus cartazes posteriores como, por exemplo, o Theatre de L'Opera. Nesses outros trabalhos, o efeito é mais leve e livre e neles Chéret criou uma garota dos sonhos que passou a morar no imaginário popular. Sua modelo favorita era uma atriz e dançarina dinamarquesa chamada Charlotte Wiehe que nos posters surge feliz da vida, dançando e rindo e fazendo com que os senhores se agitassem e as senhoras e garotas imitassem sua aparência e estilo.
Jules Chéret (1894)

Ver os posters de Chéret é o equivalente pictórico da expectativa despertada pelo som de uma rolha de cortiça sendo liberada de uma garrafa de champanhe. As cores são fluentes, efervescentes e transparentes e as ricas camadas de matizes são organizadas com cuidado para produzir uma sensação de espontaneidade. Os simpáticos arlequins e pierrôs, as encantadoras colombinas, suas frágeis garotas usando máscaras e fantasias, eram um deleite para os olhos enquanto dançavam sobre os muros cinzentos de Paris.
Tudo bem que a evolução das artes gráficas, especialmente a introdução da cor nas impressões e o tamanho das ilustrações dotam os cartazes de Chéret com uma grande capacidade expressiva e comunicativa, mas ele foi pioneiro no uso das cores planas – os tons quentes de amarelo, laranja e vermelho – e na tentativa de alcançar a tridimensionalidade.
Talvez algumas das imagens mais emblemáticas da Art Nouveau sejam os cartazes que Chéret fez em 1892 para as apresentações da bailarina americana Loïe Fuller no Folies Bergère, nos quais ele reproduziu as cores brilhantes que a artista criava na ribalta graças aos efeitos da iluminação elétrica sobre suas vestes e mantos flutuantes. É interessante verificar como a Loïe inventada por Chéret se parece com a musa nórdica da vida dele, Charlotte Wiehe (rsrs)
Jules Chéret (1897)

Considerado o pai da litografia a cores e do cartaz, as inovações de Jules Cheret influenciaram todos, de Toulouse-Lautrec - que o chamava de “Mestre” - aos publicitários e anunciantes modernos. Seu trabalho transcendeu o domínio da arte chamada de “comercial” e suas pinturas e pastéis eram adquiridas ansiosamente pelos colecionadores mais influentes de então, bem como por outros artistas como Degas e Monet.
Os seus esforços pioneiros na gravura a cores foram um importante contributo para a emoção e a energia associadas à Belle Époque muito principalmente porque, desde os seus primeiros trabalhos, o uso do preto e as formas planas interligadas resultaram no divórcio da interpretação tradicional da forma e da ilusão de profundidade, que os artistas mais jovens, como Toulouse-Lautrec e Bonnard, em seguida, desenvolveram ainda mais.
Cheret também influenciou o pintor Georges Pierre Seurat, considerado o pai do Pontilhismo. Duas das obras do artista, Le Cirque e Le Chahut, tiveram o circos e os dançarinos como temas em vez da sua costumeira dependência da natureza, aliás uma das características do naturalismo impressionista pontilhado. Em sentido horário, Le Cirque, de fato, chega a repetir as cores da protagonista do cartazista enquanto que Le Chahut – embaixo à direita - ecoa os elementos encontrados no Spectacle-Promenade de l'Horloge que Cheret cometera uma década antes.
Jules Chéret (1891) / Jules Chéret (1888)
/ Jules Chéret (1876) / Jules Chéret (1889)

À arte pontilhada de Seurat, tão casada com o mundo natural, Cheret forneceu um conceito artificial que Seurat achou útil. O certo é que através da crescente influência de Cheret os artistas mais jovens descobriram que o cartaz, por sua própria natureza, era uma forma de taquigrafia visual na qual as idéias poderiam ser expressas de forma simples e eficaz.
Os cartazes portanto resumem o espírito da era conhecida como fin de siècle, um mundo ilusório de estilo quase alegórico no qual aqui e ali eram cometidos raros comentários sobre a vida social porém sem deixar de ser decorativos. Assim os posters de Cheret como Bal au Moulin Rouge eram infalivelmente sucessos de público. Alunos seus, como Lucien Lefèvre, no cartaz Electricine, e Georges Meunier, no poster anunciando um evento no Elysée Montmartre, continuaram ilustrando os cabarés, os concertos, produtos ou cenas domésticas conforme a cartilha do ilustre professor.
Jules Chéret (1889) / Lucien Lefèvre (1897)
/ Georges Meunier (1895) / Henri de Toulouse Lautrec (1891)

Por mais de uma década Jules Cheret não teve um rival sério pois era o único que realmente entendia as possibilidades do cartaz. Mas então o conde e pintor e litógrafo Henri Marie Raymond de Toulouse-Lautrec Monfa apareceu no horizonte propagandístico e, é claro, seus cartazes foram muito além.
Note que o primeiro cartaz da montagem acima, assinado por Jules Chéret, anunciava a inauguração do cabaret Moulin Rouge, em 1889, no seu primeiro endereço. E que embaixo da montagem, à direita, se encontra um novo cartaz para o mesmo estabelecimento, dessa feita criado por Toulouse- Lautrec em 1891. A mudança de estilo é óbvia.
Lautrec parece ter eliminado os elementos tradicionais do trabalho do mestre, exagerando certos aspectos e dando asas à criatividade. Há um contraste acentuado entre os cartazes de Cheret, destinados a agradar e deleitar, e os de Lautrec que podem até ser feios e mesmo desconfortáveis, mas são simplesmente geniais. Os posters de Henri Toulouse-Lautrec - ele fez apenas trinta e um durante sua curta vida - foram definitivos para estabelecer esse tipo de trabalho como uma forma de arte.
Mas eles serão uma outra conversa.


24/03/2018

O menino

Cândido Portinari - Retirantes (1944)


Heraldo Palmeira
O menino passou lá adiante, na rua de paralelepípedos escaldantes. Pequenino, magrinho. Não sei se faminto ou sucinto pela aridez eterna daquela vida ainda breve, que parece correr num fio de navalha. Ele me olhou quase como um desvio indesejado, evitando mirar meus olhos por vergonha, timidez ou medo. Ou qualquer outro mistério da sua alminha. E se foi quase sumido, do jeito que se apresentou no tempo curto daquele passar.
Penso nos meninos e meninas que sofrem em qualquer quadrante do mundo. Por que crianças sofrem, meu bom Deus? Para quê? – na verdade, a pergunta é esta! Fico submerso nesta dúvida que não tem resposta.
Penso nos meninos e meninas que, menino também, conheci desfigurados pela fome das migrações da seca – aquela gente esquálida, famílias inteiras que os adultos da cidade chamavam de retirantes. Eu enxergava apenas as crianças – deixava os adultos para os adultos. Que riam um pouco depois da comida dada com compaixão, que até arriscavam brincar depois do prato. Um ato paliativo de pisar o terreno dos prazeres da infância, que duraria pouco porque havia a estrada por onde seguiriam na marcha em busca de algum milagre.
Penso nas meninas que apressavam meu coração infantil, ansioso por encontrar traços da beleza das princesinhas das histórias infantis. Penso na tristeza que me dominava por perceber que a fantasia das páginas coloridas não se desenhava ali naquele papel enrugado, amarelado, repleto de marcas incontornáveis, praticamente imprestável para rabiscar qualquer coisa feliz.
Penso nos meninos e meninas que, hoje sei, não escapavam de toda sorte de abusos nas trocas cruéis impostas pelo mundo de verdade, impiedoso, capaz de tirar vantagem da miséria que esgota alternativas.
Penso nos meninos e meninas que dependiam de caridade. Que seguiam de pés machucados, com alpercatas remendadas a pregos e grampos, enroladas em molambos para aliviar a precariedade do pisar.
Penso nos meninos e meninas que seguiam naquele cortejo quase fúnebre e ainda se encantavam por alguns segundos diante do grupo escolar, mesmo sabendo que sequer passariam pelo portão. Penso por que eu estava lá dentro, em farda impecável, orgulhoso, por certo causando inveja, labirinto que nunca desvendei.
Penso nos meninos e meninas que ficaram pelo caminho porque não houve tempo para alcançarem o milagre de escapar. Penso que vi tudo isso impotente, sem saber por que valeu a pena escapar sem milagre, por que nunca passei nem perto daquele sofrer, morte em vida.
Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
Esse silêncio todo me atordoa
Pergunto que danada de sorte foi essa que me escolheu para nascer, crescer e viver sem flagelos. Sem trilhar descalço o pó amarelo das estradas do incerto sem fim. Sem machucar tanto os pés, sem molambos imundos, ensanguentados. Que danada de sorte foi essa que me protegeu, que me levou somente até os calos e leves inchaços, no máximo aos passos em falso indignos de nota?
Ah, o destino! As linhas tortas do mistério, longas ou fatais, sublinhadas pelos acasos e predestinações. Decifradas sem nenhuma certeza pela lábia das videntes e cartomantes, com seus truques, ênfases e incensos penetrantes. Pelo verbo torto das ciganas, que traçavam as cidades com seus dentes de ouro, afiados, reluzentes. Com seus batons extravagantes e roupas incandescentes.
As mesmas esquinas e encruzilhadas, rotas de fuga ou armadilhas tramadas. As forças ocultas indomáveis. O medo das bruxarias. As atrizes que metiam medo na molecada. As eternas simonias, o dinheiro colhido no roçado da boa-fé.
Alguns dias, eu já nem lembrava mais daquele menino sucinto andado sobre os paralelepípedos escaldantes, que me trouxe de volta a dor de tantos meninos e meninas, e suas sinas que eu mal conseguia esboçar.
Madrugada alta, quase amanhecendo. A matriz silenciosa, casa da minha santinha. Dobrei a esquina, susto danado: aquele menino sucinto na ruela. Tive medo dos olhos que me encaravam sem desvio. Dele. Raquítico. Vindo rápido em minha direção, mesmo eu um brutamontes, ele mal alcançando minha cintura.
Era ruela, encontro inevitável, ninguém por perto, pouco espaço para desvencilhar ou recuar. Ele parou, me encarou com a força de quem domina a arte de escapar dos apertos e disse com um fiapo de voz firme:
– O senhor é um moço bonito. Gostei de lhe conhecer porque também gosto de música!
Esbocei um sorriso, pronto para desabar. Ele me estendeu um saco de papel:
– Pode pegar um, está quentinho. Meu pai faz pão, eu vendo. Mas o senhor não precisa pagar. É minha cortesia.
Nem sei se tive tempo de agradecer, o pão nu aquecendo a ponta dos dedos. Caiu sobre mim, como sereno de madrugada, uma música que gostaria de ter ouvido junto com ele:
Debulhar o trigo
Recolher cada bago do trigo
Forjar no trigo o milagre do pão
E se fartar de pão
Afagar a terra
Conhecer os desejos da terra
Cio da terra, propícia estação
E fecundar o chão
Ouvi tudo misturado, Milton, Pena Branca, Chico, Xavantinho. O fraseado potente do contrabaixo urbano, a simplicidade das violas do interior. O sobressalto do sino, parceiro do relógio da matriz anunciando juntos que a escuridão da noite estava por um fio diante da manhã iminente. O desenho de um sonho esmaecendo na paisagem, o encanto do conto infantil prestes a ser quebrado pela luz do sol. Hora última para sossegar tantos personagens.
E foi embora ligeiro e me deixou paralisado, com vergonha de chorar por ele, por mim, por todos os meninos e meninas que ressuscitaram naquele nosso encontro breve. Segui sem olhar para trás. Chorei por todos nós. Sem qualquer vergonha. Era tudo que me restava fazer. O milagre do pão!
Entrei na casa semiadormecida no silêncio que eu tanto precisava para adormecer antes que tudo acordasse a tempo de seguir no fio da navalha cotidiano. Acaso? Predestinação? Sorte?
Perguntas para depois do acordar, pois a sonolência é negligente. E a bola de cristal não costuma rodar. E as cartas são marcadas. E os dados viciados estão lançados, prestes a mostrar de um a seis nas contas do crupiê. As apostas estão abertas.


Trechos de:
Cálice (Chico Buarque-Gilberto Gil)
Cio da Terra (Milton Nascimento-Chico Buarque)