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30/12/2018

Feliz Ano Novo

fotografia WBJ


Mano e Ana
Como o dia nessa imagem, do crepúsculo, termina agora um ano.
E como a luz que se vai da imagem, também os fatos do ano aconteceram e se foram. Bons ou maus, passaram e não podem ser refeitos. Por ninguém.
E começa um novo ano. Como todo ano, começa cheio de promessas, dúvidas, medos, esperanças.
Esperamos alegrias, e sabemos que também virão tristezas. Quantas de uma e quantas da outra? Não sabemos. Como não soubemos antes que viessem, em todos os anos que já vivemos.
Mas uma coisa é certa: esse ano novo não nos é dado de presente. Não vem já feito e prontinho para nós. Não, somos nós também que o faremos.
Muito ou pouco, na medida de nossas possibilidades e das nossas forças. Que são maiores do que imaginamos, de verdade. Então vamos nos esforçar para fazermos como as árvores, que a cada ano reflorescem, e crescem mais um pouco.
Vamos lutar para que o ano que entra seja melhor do que o que passou.  E se não for, que não seja por não termos tentado.
Um feliz 2019 para todos vocês. Nos encontraremos de novo depois do dia de Reis. Um grande abraço.
 
fotografia WBJ


22/12/2018

Jesus no pé de goiaba

gravura Ana Nunes

Heraldo Palmeira
Fiquei impressionado quando vi tanta gente (até da imprensa) ridicularizando a futura ministra de Estado da Mulher, da Família e Direitos Humanos, depois que ela corajosamente contou sua história de abusos na infância e revelou que subia numa goiabeira para buscar refúgio emocional, para conversar com Jesus, a quem tomou como amigo.
Eu era alegre como um rio
Um bicho, um bando de pardais
Como um galo, quando havia
Quando havia galos, noites e quintais
Mas veio o tempo negro
E, à força, fez comigo
O mal que a força sempre faz
Mas não sou mudo
Hoje eu canto muito mais
Para mim, foi incompreensível compreender como tantas pessoas – inclusive mulheres – conseguiram tripudiar de uma vítima de abuso. Não devem ter capacidade de entender a crueldade do que fizeram. Pior, por partidarismo político-ideológico dos mais rudimentares!
E, claro, no escárnio que essas pessoas explodiram pelas redes sociais, também embutiram seu preconceito contra os evangélicos – cristãos como eu, católico que me acostumei desde cedo, pelo que aprendi em casa, a respeitar tudo quanto fosse divergente: posições econômico-sociais, cores de pele, religiões, opções pessoais de vida...
Agora, quase no acender das luzes do Natal, leio a notícia de que a futura ministra recebeu representantes de diversas entidades da comunidade gay. Um gesto claro de harmonia, acolhimento, convivência cristã, fé no futuro, na comunhão de ideias e esforços para a construção de caminhos comuns e positivos.
O presidente de uma delas declarou que aquela foi uma “reunião histórica”, no que parece ser a abertura de uma porta de diálogo desarmado do discurso isolacionista que se estabeleceu ao longo dos anos.
Um discurso surrado que pregou separatismos, como se, obrigatoriamente, pessoas tivessem de ser acomodadas em guetos e submetidas a tutelas ideológicas que nada de novo produziram ao longo do tempo. Afinal, segundo estudos citados pelas próprias entidades, nada menos do que 60% dos homossexuais já pensaram em suicídio e obviamente suas motivações não apareceram nos últimos meses, vem de cicatrizes antigas.
O mesmo cidadão que considerou a reunião histórica, arrematou com uma frase que soa forte: “Essas pessoas estão no pé de goiaba, assim como um dia a ministra esteve”.
Que essa frase forte inspire a nossa capacidade de sentir compaixão de quem sofre dores que a vida nos poupou e dores que causamos. Que nos inspire a conviver em harmonia com quem fala uma linguagem diferente, mas que tem tanto valor quanto a nossa forma metida a besta de falar. Que inspire esforços contra as desigualdades e a favor da paz coletiva.
Que essa frase forte nos coloque diante do espelho e nos mostre o quanto somos ridículos quando insistimos em achincalhar os que julgamos inferiores – ridículos que somos ao pensar que temos alguma superioridade e que nos cabe ganhar sempre um jogo que, na verdade, nem sabemos para que serve ganhar.
É Natal de novo, tempo em que caprichamos nas palavras doces, bonitas, escolhidas quase sempre para cumprir um ritual. Que tal abrir o dicionário e falar com sentimento de irmandade e com riqueza de detalhes, entendendo que nem tudo é sim? Sim, porque há o não, tão forte e sonoro quanto.
Sim, há o oposto que também tem direito de estar posto à mesa da Santa Ceia que montamos em mesas fartas, porque gostamos de comer e de beber e só queremos uma boa desculpa – tanto é verdade que a tradição cristã realça apenas uma ceia na vida de Cristo, a da Paixão, mas nós corremos para inventar a do Natal.
Pois bem, que tal incluir nos nossos mimos de Natal o acolhimento do outro, mesmo que seja oposto? Acolher de verdade, de coração sentido para dar sentido ao sentido da festa.
Se temos fé o suficiente para festejar o nascimento do Menino Jesus, não cai bem duvidar que Ele, feito Cristo, pode ir a um pé de goiaba consolar a dor de alguém. É uma questão de fé de quem tem, que só diz respeito ao dono da fé e ao Senhor da fé.
Eu prefiro ficar por aqui, na festa que me reanima desde criança. Sem levar em conta posições econômico-sociais, cores de pele, religiões, opções pessoais de vida, qualidade dos ingredientes à mesa... O que importa de verdade não é celebrar?
Pouco me importa que o Jesus de cada um vá onde eles bem entenderem. O meu, levo onde meu coração imperfeito for. E Ele estará lá, como sempre esteve. É apenas uma questão de fé na barca da vida.
Velejar, velejei
No mar do Senhor
Lá eu vi a fé e a paixão
Lá eu vi a agonia
Da barca dos homens
Boas festas, preparando um ano-novo dos bons! E que a gente não estrague tudo.

*Trechos de:
Galos, noites e quintais (Belchior)
Paixão e fé (Tavinho Moura-Fernando Brant)


18/12/2018

A Galle Lusitana

fotografia Moacir Pimentel

 Moacir Pimentel
O registro mais antigo de que se tem notícia da cidade de Galle se encontra no Mapa Mundi de Ptolomeu datado de 125 DC, quando a aldeia já era um porto movimentado, negociando com a Grécia, países árabes, China e outros. O local também é mencionado como “porto de escala do Levante” na cosmografia de Cosmas Indicopleustes.
Na virada dos séculos XV e XVI, a ilha então conhecida pelo mundo “civilizado” como Serendib e que hoje é chamada de Lanka já tinha, ao longo dos séculos, experimentado uma variedade de influências culturais, principalmente porque se tornou parte natural das rotas marítimas mais meridionais que ligavam a Ásia ao Mediterrâneo. Foi assim que marinheiros e comerciantes chineses, gregos, romanos, persas, árabes e indianos convergiram para a Ilha e lá deixaram suas marcas em maior ou menor grau.
Mas o ano de 1505 viu o início de um tipo completamente diferente de influência cultural.
“Cessem do sábio Grego, e do troiano,
As navegações grandes que fizeram:
Cale-se de Alexandro e de Trajano,
A fama das vitórias que tiveram,
Que eu canto o peito ilustre Lusitano,
A quem Netuno e Marte obedeceram:
Cesse tudo o que a Musa antiga canta,
Que outro valor mais alto se alevanta “
( Os Lusíadas- Luís de Camões)
Pois é. Uma frota portuguesa foi desviada do curso perto das Ilhas Maldivas e acabou arribando em um porto na região ao sul da ilha. Porto esse onde os portugueses desembarcaram sob o comando de Dom Lourenço de Almeida para depois “causar” como diz a juventude, uma mudança notável na ilha, em grande parte facilitada - dizem! - por uma estreita e estranha amizade que desenvolveram com o então rei do país.
fotografia Moacir Pimentel

Foi em Galle que rolou o primeiro contato dos nativos com os europeus e seu estilo de vida diferente e seus equipamentos militares avançados. Os ilhéus acharam os portugueses muuuuito estranhos, pelo menos na crônica histórica cingalesa de nome Rajavaliya, mais exatamente nos capítulos que versam sobre a construção do forte de Colombo em 1517, onde os tugas são descritos como seres “pálidos e bonitos em excesso”. Tem mais.
Há relatos históricos da lavra tanto de cingaleses quanto de tamils narrando como os lusitanos usavam “botas e chapéus de ferro” e como não descansavam nem um minuto andando de um lado para o outro, comendo pedaços de “pedra branca” – o pão! - e bebendo sangue - o vinho!- e trocando dois ou três pedaços de ouro e de prata por um peixe. Mas nada foi tão minuciosamente descrito quanto a “voz dos canhões” europeus “mais alta que o trovão” e cujas balas voavam e quebravam fortalezas de granito.
Numa época em que a então Serendib era vulnerável à invasão pelo norte, a chegada dos portugueses impediu- a de se tornar uma província indiana. Em vez disso, o Ceilão, como foi de novo rebatizado, ganhou uma identidade única, pois os portugueses foram só os primeiros dos três povos colonizadores - os outros foram os holandeses e britânicos - a ter uma influência marcante sobre aquela cultura ao longo de um período de quatrocentos anos.
Nem todas as influências dos colonizadores foram benéficas, mas sem dúvida que os lusitanos contribuíram para uma sociedade extraordinariamente diversa, na qual os aspectos tradicionais felizmente sobreviveram mesmo tendo as senhoras nativas aprendido a fazer rendas de bilro.
fotografia Moacir Pimentel

A presença portuguesa na Ásia foi geralmente limitada às áreas urbanas, mas Sri Lanka foi uma exceção à regra, onde os portugueses deixaram suas pegadas no campo e na administração, na sociedade e na religião, nas artes e na linguagem.
O catolicismo foi introduzido, é claro, por missionários portugueses, e os números indicam que eles foram mais bem sucedidos em fidelizar seus convertidos do que os holandeses que pregaram o protestantismo depois de expulsar os ibéricos. Segundo o censo de 2012 os católicos, que incluem cingaleses e tamils, compõem mais de seis por cento da população da ilha enquanto que os protestantes representam apenas um por cento.
Infelizmente só permanecem de pé as ruínas das igrejas portuguesas. Na verdade, a arquitetura colonial portuguesa que chegou aos nossos tempos é insignificante pois até mesmo os fortes que os portugueses construíram foram reconstruídos pelos holandeses, os mestres-construtores da época.
fotografia Moacir Pimentel
Muitos cingaleses adotaram sobrenomes portugueses modificando-os um “poucachinho”. É divertido conhecer vestindo sarongues e sáris os Croos – de Cruz - os Alwis – de Alves - os Saram – de Serra, os Fonseka, os Gomis, os Mendis, os Perera e os Vaas – de Vaz.
Passados tantos anos hoje eu entendo que o meu afeto pela ilha talvez tenha nascido das suas semelhanças com meu velho Portugal e com o Nordeste da minha infância, nos flashes familares que, de repente, eram capazes de fazer um expatriado de vinte e poucos anos, lá no fim do mundo, sentir-se em casa.
fotografias Moacir Pimentel

A interação dos portugueses e dos ilhéus levou à evolução de uma nova língua, o crioulo português, falado pelos membros da comunidade Burgher – os descendentes dos portugueses e holandeses – e pelos da comunidade Kaffir – os escravos africanos trazidos para a ilha pelos portugueses e mais tarde pelos holandeses e britânicos. O crioulo português é composto por palavras em português, cingalês, tamil e até mesmo holandês e inglês e é considerado o mais importante dialeto crioulo na Ásia por causa de sua vitalidade.
A influência portuguesa no vocabulário dos ilhéus foi notável. Muitíssimas palavras foram absorvidas com pouca ou nenhuma alteração fonética. Das duas primeiras vezes que visitei a ilha tomei o cuidado de anotar em uma caderneta de bordo algumas delas, à medida que as ia identificando.
Os exemplos incluem: tuwaya de toalha, almariya de armário, narang de laranja, annasi de ananás, saban de sabão, viduruwa de vidro, sumanaya de semana, masaya de mês, baldiya de balde, sapattuwa de sapato, bonikka de boneca, lensuwa de lenço, bottama de botão, kamisaya de camisa, kussiya de cozinha, salada, simenti de cimento e mais outras mil.
Também é grande a influência portuguesa na música cingalesa, pois os colonizadores introduziram instrumentos ocidentais como o violão e formas musicais como a balada. Mais significativa, entretanto, foi a importação da música rítmica instrumental chamada baila, que era popular entre os comerciantes portugueses e seus escravos Kaffir. Caracterizada pela batida ora alegre ora triste, a baila tornou-se um sucesso com suas letras que devem ser hilárias pois fazem rir a todos e instrumentos modernos como guitarra elétrica, teclados e bateria.
Engana-se quem acredita que os molhos saborosíssimos da culinária de Sri Lanka são criação dos ilhéus. Os portugueses introduziram os pimentões e os tomates na gastronomia local, além, é claro, da panificação e de alguns bolos como o fiado - um bolo folhado, recheado de castanhas de cadju. Adivinha quem levou o cajú, fruto nativo do Brasil, para a Ásia?



15/12/2018

Um presente de Natal

fotografia Ana Nunes



Ana Nunes
Uma toalha branca
em pontos de cruz cruzados
inacabada em cores coloridas.
Em fios soltos de pontas doloridas
saídos de agulha pontuda e lisa
que furou o pano
e furou a pele
e deixou pintas vermelhas delicadas.
Costurou lanternas sextavadas
gueixas esguias entre faixas e quimonos.
E descosturou sonhos redondos
escapados de um livro descarnado
e de folhas soltas no revirar.
E paninhos pequenos assim bordados
de tirar dos lábios açúcares fugidos
de doces sonhos e sonhos doces.
Com o gasto do tempo
olhos cansados guardaram as linhas
e o pano amarelado de tanto esperar.
Que no intento de sacudir recordos
e enternecer corações
foi branqueado no sol ardente
e de rendas circundado.
Embrulhado em papel de seda branco
com fita vermelha no laço perfeito.
O antigo no presente se perde
e nas portas do Natal
a   moça jovem olhou surpresa
e as mãos desconheceram o tato
os  olhos não reconheceram as gueixas
nem os pontos laçados em cor.
Porque o tempo é cruel
nas lembranças desbotadas.
Três irmãs em dobras de toalha branca
e um pensamento de perda em dor
que não vai passar.

 
fotografia Ana Nunes


12/12/2018

Dores escolhidas

Elis Regina (imagem - divulgação)


Heraldo Palmeira
A feijoada do sábado no boteco da esquina estava prometida há tanto tempo, e sempre aparecia alguma milacria na agenda para atrapalhar. Ele era da música, ambiente em que nos conhecemos havia mais de vinte anos. E vinha há outros muitos numa luta enorme de sobreviver, não tinha mesmo como preferir uma feijoada adiável diante de um trabalho qualquer que fosse.
Ficamos alguns meses tentando, numa espécie de “olá, como vai, eu vou indo e você”, como se todos estivéssemos correndo para pegar um lugar no futuro ou em busca de um sono tranquilo. Como se houvesse um sinal fechado acendendo e apagando correrias contra os nossos afetos.
Finalmente o nosso sábado prometido. E ele chegou devagar, eu o vi descer do ônibus e atravessar a rua como que medindo cada passo. O abraço apertado, nossas palavras de ordem ordenando o carinho que consagra uma amizade em amor, e o respeito erguido e celebrado pela admiração.
Reclamou da dor cotidiana, ininterrupta num dos joelhos. “O maldito menisco!” – falou como se falar soasse bálsamo e alívio. Como se me apresentasse um desconhecido. Como se eu não tivesse os meus próprios meniscos escondidos, à espreita da fadiga mais dia, menos dia. Uma maldita cartilagem que serve para ajudar o funcionamento da articulação do joelho, realizar a improvável tarefa de amaciar o contato dos dois ossos da perna que recebem nosso peso e sustentam o caminhar. Mas que se desgasta, sai do lugar em determinado momento (e não acha o caminho de volta) e se torna especialista em contribuir com dores agudas e gerar insegurança a cada passo – por incômodo e medo da dor.
Até ensaiamos falar de exercícios físicos de reforço da musculatura dos joelhos (para evitar a cirurgia simples, ambulatorial, mas que não evita o retorno do problema com o tempo) e do uso constante de colágeno, vaga promessa de recompor cartilagens. Mas só de imaginar os tais exercícios físicos, deu cansaço imediato. Ainda mais com esse negócio de medicamento de uso constante, impondo agendas a quem já não quer agenda nenhuma.
Preferimos obviamente dar atenção direta à cerveja que chegaria em segundos, sempre nas tradicionais garrafas “mofadas” que faziam a fama do lugar. Não queríamos repetir a mania dos realmente velhos, que danam a trocar momentos de satisfação por lamúrias, falar de doenças e terapias. E o prazer daquele (re)encontro era raro para ser desperdiçado com “ais” e “uis”.
Eu conhecera aquele bom sujeito num estúdio de gravação. Fizemos dois discos juntos, eu produzindo, ele na engenharia de som, um se intrometendo generosamente na tarefa do outro, diversão inesquecível. Falamos das atividades que estavam nos ocupando agora, das expectativas, do povo de casa, do que poderia vir depois. Presente a velha preocupação com o amanhã que nos tira o sossego desde muito antes de anteontem.
O primeiro gole da cerveja desceu como o paraíso refrescante em cascata, inebriando o interior. Um freio de arrumação para sossegar qualquer inquietude da alma. Ao menos pelos próximos trinta segundos, uma pitada de eternidade na região do prazer.
Falamos de muitas coisas e, natural pela idade em que estamos, da velhice que está ali do outro lado da rua querendo namorar com a gente na marra. Claro que o tempo marcaria presença na nossa conversa. Mas mantivemos lamúrias, doenças e terapias fora de campo.
Falamos da crise da música, do vazio criativo, da saudade dos grandes momentos. Lembramos de Elis, inigualável! De uma entrevista na tevê onde citava o custo muito alto dos discos como motivo de afastamento do público. Mal sabia ela que chegaria um tempo em que o negócio ficaria ainda pior, a capacidade criativa sumiria de circulação e aquilo tudo que merecia sua defesa a unhas e dentes ficaria sem valor.
Desabrida como sempre, falava de tudo com coragem, inclusive do estado já decadente do sistema, das canalhices nas relações profissionais e com as gravadoras, da postura individualista de artistas e músicos, que terminaram sendo as principais vítimas da falência do mercado. Cenário que alguns deles ajudaram a desmontar por covardia ou conivência. Ou as duas juntas.
“Desacostumamos disso, da coragem. Hoje temos de aturar esse mundo de tantas aparências frágeis, de bocas caladas em compadrio, de todos escondidos”, ele disse com o copo suspenso na mão esquerda, olhando firme para mim como se tivesse parado, brusco, noutro sinal fechado, as contradições do tempo a caminho do próximo gole.
No finalzinho da entrevista, perguntada a respeito dos então novos intérpretes que estavam surgindo, foi taxativa a respeito da qualidade artística da sua geração: “Desculpa a falta de modéstia, mas a nossa geração foi ‘o seguinte’! Feijoada, mesmo, fomos nós que fizemos. Nós é, né? Fazer o quê?!” – ela falou com aquela ginga premeditada que a deixava linda e diabólica!
A nossa feijoada chegou, magrinha, preparada com esmero e trazida pelo velho garçom que também transita pela cozinha, que sempre me cumprimenta quando passo na porta do sujinho indo ou voltando do trabalho. E veio guarnecida de mais uma cerveja, tão “mofada” quanto a primeira.
“Estamos ficando velhos!”, reclamou meu amigo. Eu disse que sim, mas que não era motivo para mudarmos o passo. “Temos de seguir vivendo, não há como parar”, completei. Era preciso considerar que sempre existem bons motivos para insistir, tentar compreender o mecanismo da existência, encarar o envelhecimento sem tanto desânimo. Afinal, virá de qualquer maneira e nossa postura diante dele poderá piorar ou atenuar o convívio. É melhor buscar o sono tranquilo.
Lembrei de trechos de um poema que tinha muito a ver com o semblante acabrunhado que se forma diante da velhice.

Sob o olhar alheio
Velho é ridículo
Quanto mais à vontade, mais ridículo
Quanto mais fala, pior parece
Se antigo, é indesejado
Se ‘pra frente’, evitado
Se corre para pegar o ônibus, desajeitado
Capenga, dolorido, coitado
Se fala de dores, insuportável, abandonado
Se se veste sóbrio, tadinho, quadrado
Se se veste jovem, não se vê, descolado
Se fica na sua, infeliz, mofado
Se pinta o cabelo parece bruxa
Se o deixa branco parece velho
Se correto e educado, ultrapassado
Se ‘boca suja’, inconveniente, desbocado
Se dirige, irresponsável
Se não dirige, um encostado
Se tem dinheiro é procurado
Se é pobre, um fracassado
Se esquece nomes, demente, senilizado
Se lembra tudo, um fofoqueiro danado
Se magrinho, doente desenganado
Se gorducho, comilão desequilibrado
Artrose, arritmia, depressão
Colesterol alto, AVC, infartado
Se feliz risonho, bobo alegre
Se carrancudo, rabugento mal humorado
Deuses, Buda, todos os santos
Benzedeira, pai de santo, saravá
O que será de nós, pobres coitados?
Que velhos que somos, se mal deu tempo de ver o tempo passar, se nem entendemos o que foi ser jovem? O que são as dores de corpo diante das lembranças dos prazeres de corpo provocados e vividos?

Enquanto os sinais de prazeres e desprazeres se misturam, como a tinta que tenta pintar o cabelo, como a briga da dieta com a vontade de comer, capengas, doloridos, coitados de todos os tratados e regras que insistem em infernizar quem já decidiu não mais lutar guerras perdidas. Quem já entendeu que enquanto houver vida, só nos resta viver.
Eu sei, nada será como antes, mas ninguém sabia antes como seria o depois. Portanto, se outro cabeludo aparecer na sua rua, eu ainda moro nessa mesma rua. Você ainda quer morar comigo? Sofro calado, a voz é um instrumento que eu não posso controlar. É só poesia, eu só preciso ter tudo aquilo por mais um dia. E a terra continua azul da cor do seu vestido, e o girassol tem a cor do seu cabelo. Eu só desejo mais uns instantes para saborear a vida como uma maravilha nua. Se eu morrer não chore, não, é só a lua. E alguém vai lembrar de olhar. Até sempre.
E haverá outras eternidades para que nada seja eterno em um só lugar. Ora se haverá! Ou Deus não seria perfeito nesse jogo de brincar de ser criança e envelhecer, de viver e morrer, à imagem e semelhança.
Mais uma cerveja “mofada” foi posta. Unanimidade naquelas mesas, ignorando diferenças e indiferenças, juventudes e velhices, silêncios e sons. Apenas vivendo o tempo de esvaziarem a garrafa. Sem medos, sem dramas, sem perguntas incômodas, nem aí para o fato de cada um ter uma opinião formada a respeito dela. Muito menos aí para o futuro incerto da garrafa vazia. Não, nem toda unanimidade é burra, até porque há quem detesta cerveja, mesmo as “mofadas”. Unanimidade!...
O que importa se estarei triste ou feliz, se ninguém vai querer saber? A dor e a alegria serão minhas, as pessoas continuarão a passar ao lado sem me ver. Talvez seja mais certo não querer enxergar tudo, apenas aquilo que cabe no olhar. Sem perguntas, sem respostas, ora mais medo ora menos medo, sendo apenas o que pode ser.
Ah, os tempos em que a gente achava que enxergava tudo... Nunca existiu aquela visão, acreditamos na sua ilusão. Sim, a gente acredita no que quer e bem entende e depois fica sem entender quando não entende.
A ladeira da rua continuará ali, pouco importando a dor no joelho. Subir ou não vai trazer ou afastar o prazer da cerveja “mofada” e da feijoada magrinha, preparada com esmero e trazida pelo velho garçom que também transita pela cozinha.
Eu não boto fé nessa loucura, nesse medo onipresente. Eu não gosto de quem me arruína em pedaços. Mas não sou louco o suficiente para ignorar o temor de não dar conta de subir a ladeira ou de descer desembestado.
É sensato tomar a linha e o linho para bordar o próprio retrato, como um sudário sem santidade alguma, apenas o relevo da estrada e o vapor da correnteza de uma prece tecidas ponto a ponto pela agulha do real. É sensato ter a sabedoria de usar as cores da fantasia para ziguezaguear tormentos e alegrias nas curvas generosas da compreensão. A vida não é nada além da compreensão que se tem dela.
Mas também não quero perder o sono por isso. Pra que morrer do tiro que não levei? Posso achar prazeres no terreno plano, dar sentido ao devagar e sempre, fazer minhas juras secretas, aquelas que o coração não diz.
Há cervejas “mofadas” e feijoadas magrinhas por toda parte. E velhos garçons que também transitam pelas cozinhas e cumprimentam seus clientes que estão indo ou vindo do trabalho, vozes involuntárias do tempo. É assim desde que o mundo é mundo e continuará sendo enquanto vida houver, porque sempre haverá um jovem do minuto anterior envelhecido pelo minuto seguinte.
Do que adiantará ficar fazendo a conta desse tic tac teimoso que só anda para a frente? Quem tentou parar ficou para trás e todos se foram. Por isso, é melhor não atrasar, apenas bater estrada torcendo para dar tempo de ir, e voltar onde valer a pena, onde haverá alguém para rever. Pode até sobrar tempo para outros assuntos que nem eram malditos, apenas nunca foram ditos. Ou não existem trilhões de estrelas no céu? Quem de nós, com modestas duas contas nos olhos, atravessa inteiro esse imenso véu de brilhos e escuridões? Quem é capaz de explicar esse destino?
O amigo e eu já estávamos ficando mofados de tanta cerveja, rindo muito, rindo de tudo, de nós, até do que não era risível. Daí a pouco já estaríamos pensando em jantar. Nos levantamos apoiando nas cadeiras, rindo mais um pouco de nós – talvez, o melhor riso que existe, daquele que se aponta o dedo na direção do nariz do outro e destrava mais uma gargalhada vinda do espelho invisível. Não há terapia melhor para acomodar a pátina instalada sobre a juventude.
O velho garçom que também transita pela cozinha me ajudou a colocar meu amigo no táxi do ponto da esquina, motorista antigo no bairro – rindo de nós sem sair do carro, sem entender que estávamos rindo dele também.
Depois, o velho garçom que também transita pela cozinha atravessou a rua comigo para me esquivar dos carros que pareciam embriagados a olho nu. Claro que eu estava muito bem, apenas usufruindo aquele luxo, que não é para qualquer um, de ser levado em casa daquele jeito. Tão firme a ponto de enxergar como o mundo estava rodando perigosamente.
Encostei a porta devagarinho e me atirei na cama. A última coisa de que me lembro foi ouvir a voz de Deus vindo do rádio, cantando “Nada a fazer senão esquecer o medo...”. Como a me dizer que é indispensável deixar virar poesia qualquer resto de poesia que ainda exista em mim.
Amanheci certo de que tinha vivido aquele ontem para sempre. Lembrei de tudo que não esqueci, sem lamentar o que não lembrei. O rádio me dava razão, na voz do cantor: “Sim, se não for pra sempre, vai ficar pra sempre que a gente lembrar”.

Trechos de:
E os velhos? (Ana Nunes)

Inspirações incidentais:
Sinal fechado (Paulinho da Viola)
Só nos resta viver (Angela Rô Rô)
Nada será como antes (Milton Nascimento-Ronaldo Bastos)
Detalhes (Roberto Carlos-Erasmo Carlos)
Um girassol da cor de seu cabelo (Lô Borges-Márcio Borges)
Sofro calado (Milton Nascimento-Regis Faria)
Canções e momentos (Milton Nascimento-Fernando Brant)
Beijo partido (Toninho Horta)
A linha e o linho (Gilberto Gil)
Jura secreta (Sueli Costa-Abel Silva)
As várias pontas de uma estrela (Milton Nascimento-Caetano Veloso)
Caçador de mim (Luiz Carlos Sá-Sérgio Magrão)
Sim (Renato Luciano-Oswaldo Montenegro)



09/12/2018

O Sul da Ilha

fotografia Moacir Pimentel

 Moacir Pimentel
E então lá fomos nós deixando para trás os Budas de Colombo rumo ao Sul Maravilha da Ilha Abençoada. Simplesmente não se pode falar de Sri Lanka sem falar de religião – o budismo, o hinduísmo, o Islão e o cristianismo. Exceto no caso dos cristãos, que podem ser encontrados em vários grupos étnicos, essas tradições religiosas mapeiam o país e, apesar dos budistas e hindus de Sri Lanka compartilharem uma série de crenças fundamentais e práticas rituais, de certa forma, manipuladas pela política, elas causaram uma guerra fratricida que durou longos vinte e seis anos.
Os códigos morais de ambas as religiões recomendam, por exemplo, as moderação e contenção, os hindus enfatizando a disciplina e os budistas defendendo “o caminho do meio”. Em ambos, o conceito de karma e renascimento são centrais, idéias que postulam que as nossas ações nessa vida determinam o tipo de vida na qual cada um renascerá pelo mérito que se ganha.
Embora tanto o budismo como o hinduísmo também proponham que se pode escapar do ciclo de renascimento, meta altamente elaborada dentro do budismo, a aquisição de mérito espiritual para obter um melhor renascimento quer para si próprio quer para os entes queridos é defendida na ilha de Lanka por gregos e troianos. Face a uma paisagem tão espiritualizada é difícil compreender a guerra civil no país.
Em 2009 quando estivemos em Sri Lanka pela última vez, os ânimos e a guerrilha já haviam serenado e o armistício já havia sido assinado mas o fim dos conflitos era algo ainda muito recente e as muitas feridas ainda não tinham cicatrizado.
Portanto não quisemos saber de longas conversas com a capital Colombo – um dos alvos prioritários dos ataques terrotistas - e, em vez, o nosso destino foi Galle, a cem quilômetros de distância dela e, em seguida, a praia de Mirissa no tranquilo e paradisíaco sul da ilha.
Confesso que gosto muuuuito de Sri Lanka. Não gostar de Sri Lanka é difícil desde a primeira visão do aeroporto com ares coloniais da capital. Há algo de relaxado e antiquado sobre o aeroporto de Colombo que é cativante. Não sei se é o gigantesco pavão esculpido com sucata que o enfeita ou porque os funcionários que checam os passaportes realmente sorriem para os visitantes ou se rola simpatia porque o único terminal nos faz recordar uma época em que as viagens aéreas ainda eram românticas.
Porém...
fotografias Moacir Pimentel

Em um estado de espírito caridoso, eu chamaria a região que liga Colombo à rodovia para Galle de “exótica”, e a usaria como exemplo de como o homem pode enfeiar mesmo a mais bela e exuberante das naturezas.
Com o seu tráfico enrolado, os seus tuk-tuks costurando ônibus e carros e motos e bicicletas, edifícios degradados, fios por todos os lados, pilhas de auto peças enferrujadas e o nosso motorista buzinando de cinco em cinco minutos – somente os rapazolas sem noção se arriscam a guiar em Sri Lanka (rsrs) - aqueles quilômetros do centro da cidade até a via expressa sul foram realmente desanimadores.
É preciso esclarecer que nenhum ser humano minimamente informado consegue realmente relaxar dentro de um veículo que não tem cintos de segurança e cujo motorista – que dirige no banco do passageiro (rsrs)! - ultrapassava compulsivamente todos ônibus dos anos cinquenta de um lado enquanto os tuk-tuks o fechavam do outro. O jeito é manter os olhos abertos e assistir ao caos organizado em movimento sem que aparentemente ninguém mais considere a séria possibilidade de uma colisão frontal a qualquer momento.
E, como se não bastasse o caos do trânsito tivemos pela frente muitos “postos de controle”.
- “TODOS para fora”, nos ordenou o militar olhando para a minha senhora no banco de trás do carro.
Êpa!
Eis aí uma enorme diferença entre se viajar solteiro e casado. Na última hipótese você se mantém ligado em como os homens estão olhando para ela. (rsrs)
Não me entenda mal. Sri Lanka é um país tranquilo e com a mulher alheia e acompanhada ninguém mexe. Tabu! Além disso jamais ouvi falar de qualquer tipo de assédio contra as turistas estrangeiras nos meus velhos tempos de andarilho.
Tudo bem que desde que o mundo é mundo homens e mulheres se olham e se querem. E que “se colar colou”. Lembro que na Índia dos anos oitenta os caras estendiam a mão para as turistas ocidentais ao conhecê-las, ansiosos por um clássico e caloroso aperto de mãos ocidental.
E que os rapazes da nossa tchurma, mais tarimbados, orientavam as viajantes recém desembarcadas e ainda sem noção no sentido de que, se as senhoras indianas não podiam ser tocadas por estranhos, a regra deveria valer para as senhoras de além fronteira, mesmo no caso de um inocente aperto de mão. E elas passavam a ignorar as mãos estendidas e a fazer o famoso gesto de saudação com ambas as mãos unidas à frente do corpo:
- “Namastê”!
E não havia problema que um “namastê” não resolvesse. Mas houve algo no olhar daquele militar que me incomodou: não era atrevimento, mas indiferença. Em seguida ele solicitou-nos os passaportes. O motorista abriu a mala apressadamente para lhe mostrar nossas sacolas que, no entanto, não foram revistadas. E pronto fomos liberados. Mas no ônibus à nossa frente vimos os turistas europeus descarregando suas malas e se colocando em fila indiana.
Tais são os inconvenientes de se visitar um país vivendo um pós-guerra; mas viajáramos sabendo que o passado ainda seria presente, que duras memórias ainda estariam intactas nessa ilha em forma de lágrima da qual eu já gostara tanto e que, por mais pacífica ou pitoresca que ela pudesse parecer na superfície, ao fim e ao cabo, estaríamos visitando inevitavelmente um lugar complexo que ainda carregava os traumas de um conflito brutal de décadas de duração entre o governo majoritário cingalês e um bando de rebeldes separatistas mal orientados por terroristas loucos de pedra chamados de Tigres.
E assim foi. As marcas da guerra não tinham desaparecido no passe de mágica da reabertura da ilha tropical, da vida selvagem, das praias imbatíveis e de novos hotéis para o turismo. Sim, com certeza muito dinheiro fora investido na ilha, estradas tinham sido construídas, edifícios coloniais restaurados e tal mas o país ainda abrigava campos de prisioneiros e um governo acusado de minar os princípios democráticos.
A sombra da guerra era evidente, à medida que nossa van avançava, principalmente na conversa do motorista tamil que volta e meia se desviava de volta ao mesmo assunto.
Porém...
Exatamente porque o exército ainda estava mobilizado para assegurar a manutenção da tão recente paz e porque foram muito frequentes os postos militares ao longo da estrada, fomos forçados a diminuir o ritmo do carro e das críticas e começamos a realmente olhar para os lados enquanto a natureza ia se impondo à cada vez mais distante metrópole.
fotografia Moacir Pimentel

Sri Lanka é verde demais! Sua beleza natural fez com que ficasse conhecida como a Pérola do Oceano Índico devido às florestas de acácias, palmeiras e de madeiras nobres como ébano, pau-ferro, mogno e teca. Uma a uma fomos deixando cidades e vilas de nomes impronunciáveis para trás e começaram a surgir as praias brancas, pequenas ilhas, coqueirais que são primos legítimos dos nossos nordestinos e oportunidades de belas fotos não só da beleza circundante mas das peculiaridades da vida cotidiana.
Os muros e jardins surgiam decorados por elefantes, as frutas se amontoavam em vendas à beira da estrada que abraçava rochas salpicadas pelas ondas, as mulheres de sári desafiavam o trânsito com seus guarda-chuvas coloridos, homens vestidos com camisas brancas e sarongs multicores pedalavam bicicletas enferrujadas ou pilotavam motos fora de moda com grossas pencas de cocos amarelos ou de bananas vermelhas equilibradas nas costas, barraquinhas vendiam curries e rotis e pescadores ofereciam o produto do dia em lonas sob o sol ao lado de ramadas de maracujá.

Saímos da autoestrada para beber uma água de coco e beliscar... Os velhos comerciantes ainda eram muito amáveis nos dizendo para ter cuidado com os motoristas de tuk-tuks porque eles eram “uns ladrões” ou ainda nos ofereciam de brinde e com um sorriso sincero algumas das bananas que acabáramos de fotografar. Tudo bem que TODOS continuavam curiosos e perguntadores mas se a conversa permanece respeitosa nos divertimos e... beliscamos!!
Sri Lanka tem alguns pratos típicos tão picantes quanto os indianos mas, em geral, sua gastronomia é muito mais suave e saborosa. O almoço tradicional é o famoso “arroz com curry” uma montanha de arroz rodeada por até doze pratinhos com diferentes curries de legumes, carnes ou peixe ou frutos do mar, dhal, chutney de manga, coco sambal etc, cozidos com pimentas, especiarias e, muitas vezes, leite de coco. O arroz cozido em uma folha de bananeira tem um paladar único.
Se pode comer arroz e curry todos os dias no mesmo restaurante e o prato sempre saberá diferente devido a infinita variedade dos curries. O prato nacional autêntico é comido com a mão direita. Pense numa coisa difícil isso de comer com os dedos! Mas o sabor é diferente pois a ideia é colocar um pouco de cada contorno no arroz e em seguida misturar tudo muito bem em uma bola que os nativos com os polegares ágeis – o truque está no polegar! - levam sem acidentes até a boca (rsrs) Em geral, as porções são enormes e, a bem da verdade, uma boa colher e um garfo substituem o polegar com galhardia. (rsrs)
fotografias Moacir Pimentel

O onipresente arroz pode voltar à mesa com outros curries também à noite, mas é mais comum que o desjejum e a ceia sejam compostos por umas panquecas de nome tremonhas ou de outras de amendoim chamadas de thosai. Mas em qualquer refeição que se preze o que não falta é o rotti – o pão de cada dia – acompanhado por um ou dois curries e pelo sambol, um ensopado de verduras e pimentas que, segundo os nativos, “refresca”.
O curd, um iogurte feito com o leite das búfalas d’ água ou vacas é muitas vezes servido como uma sobremesa e uma rica variedade de frutas está disponível o ano todo.
Uma das minhas mais antigas memórias de viagem tem a ver com uma fruta da minha infância que na montagem acima encontra-se perto dos limões. O sapoti é uma deliciosa fruta nordestina de difícil consumo pois não amadurece bem se colhida ainda verde do pé. Comi muitos suculentos sapotis ainda quentes de sol roubados do pomar da senhora minha avó.
Sucede que em 1980 logo no primeiro dos meus dias em Sri Lanka me deparei com uma senhora agachada junto a um balaio vendendo sapotis numa calçada de Colombo. Foi então que caiu a ficha e eu aprendi que a maior parte das frutas que conhecemos e julgamos nativas e tupiniquins da gema não o são: nos foram trazidas pelos portugueses lá da Ásia!
Nas praias da ilha a dieta difere um pouco e come-se bem demais começando pelo suco da tal “maçã de madeira”- pense numa fruta estranha e saborosa! - que os vendedores ambulantes oferecem pelas esquinas e terminando com os peixes e mariscos grelhados, acompanhados por chutney de manga, curry de tamarindo e pol sambol e coco ralado com um toque de lima. Quando em Roma, faça como os romanos!
Há profundas influências lusitanas e holandesas na gastronomia local como por exemplo nos arrozes cozidos no forno e em vários bolos e pudins. Eu jamais esqueci alguns quitutes nativos como por exemplo o pittu um arroz com coco ralado, a massa de arroz cozida rapidamente numa panela especial acompanhada de mil e um molhos e contornos e um pudim moreninho, srilankês da gema, que leva leite de coco, açúcar mascavo, castanha de caju, ovos e temperos diversos, incluindo cravo e canela e noz-moscada.
Porém tais pratos não estão disponíveis no meio da rua e muito menos à beira das estradas. Nas barracas espalhadas de norte a sul o que se come são os fabulosos kottus, uns sanduíches feitos com o pão rotti recheado com legumes, ovos ou carnes e diversas especiarias.
Feitos numa chapa de ferro aquecida os recheios são picados e misturados por duas lâminas de metal. É fácil saber onde comer kottu pelo barulho ritmíco e metálico dessas duas facas. O choque do metal contra metal faz um som muito característico e a batida do kottu pode ser ouvida em qualquer boteco de beira de estrada do país. Era disso que eu me alimentava quando era jovem e desbravava a ilha. Fiquei viciado!
Aliás comer fora de casa – ou nas guests houses onde eu me hospedava no começo da década de oitenta - não era um hábito comum entre os nativos de Sri Lanka. Havia em quase todas as cidades maiores pelo menos um restaurante chinês e outro árabe e não muitos mais, excetuados, é claro, os hotéis de luxo. Porém no terceiro milênio o que não falta em Sri Lanka são bons restaurantes e infelizmente quase todas as cadeias fast food ocidentais invadiram a ilha e mesmo os vendedores ambulantes além deem rottis tornaram-se peritos em hot-dogs(rsrs)
fotografias Moacir Pimentel

De barrigas cheias e de bem com a vida clicamos uns moleques jogando críquete numa das vielas do vilarejo antes de pegar novamente a estrada.
Sempre me pareceu que os singaleses são um povo dotado, entre tantas outras qualidades, de grande capacidade histriônica. Essa impressão mais uma vez se confirmou quando numa das curvas da estrada apareceu o que nos pareceu ser uma cobra bem grande. O motorista de pronto freou a van e lá fomos nós dar uma espiada. Ela estava viva mas parecia que tinha sido atingida por um carro e estava ferida.
O motorista jurou de pés juntos que tratava-se da serpente “mais perigosa” do pedaço e apressou-se a pegar um galho e a empurrá-la dramaticamente para fora da estrada. As cobras são comuns em Sri Lanka e costumam ser fotografadas – em troca de alguns dólares - enroladas nos pescoços dos turistas.(rsrs)
Na ilha a galera bebe chá, geralmente com leite, dia, noite e madrugada. Mas as bebidas alcoólicas apesar de serem condenadas pelo islamismo, budismo e hinduísmo são parte importante da rotina dos homens que consomem fartamente a cerveja, o toddy e o arak, bebidas potentíssimas feitas a partir da fermentação e da destilação de uma mesma palma nativa.
Em Sri Lanka não faltam os clubes do Bolinha! Eu diria que a ilha é um país machista sim mas que, é claro, há outros bem piores. Fora das grandes cidades, nos pequenos restaurantes há apenas homens e os garçons, por exemplo, só dirigiam a palavra a mim. O cavalheirismo... hein, cavalhei o quê? ... é inexistente e o conceito de fazer uma fila e de obedecer à ordem de chegada está além da capacidade das mentes nativas. Esses são pequenos detalhes do cotidiano que quando jovem e solteiro me passaram batidos. Mas que considero reveladores sobre a cultura do país e - atenção! - eu estou apenas observando.
As vistas e os sons do mar de um lado e da realidade doméstica e comercial do outro fizeram a viagem até Galle divertida entre os carros de boi e os ônibus, os caminhões e os tuk- tuks, as pavorosas fábricas de cimento e a visão colorida de um povo caloroso e alegre cujos caminhos são bem menos asfaltados do que os nossos.
E de repente chegamos à cidade de Galle. Mas ela vai ser outra conversa...