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30/06/2017

A velha Companhia

fotografia  WBJ

Wilson Baptista Junior
Houve um tempo em que essa chaminé que abre o post podia ser vista de boa parte de Belo Horizonte.
Com mais de cinquenta metros de altura ela era um marco no bairro Cachoeirinha. Parecia ter sempre feito parte da paisagem e a gente pensava que sempre faria.
Era a chaminé da caldeira de uma grande fábrica de tecidos. A fábrica principal de uma companhia que chegou a ter cinco mil empregados espalhados por três cidades, e a produzir cinco milhões de metros de pano por ano. Eu conheci essa companhia logo que comecei a trabalhar. Um dos primeiros sistemas que ajudei a implantar em computador foi um controle de estoque para seu almoxarifado. Que eu mais o gerente da fábrica tivemos trabalho para conseguir fazer funcionar porque os funcionários desconfiavam daquela novidade.
Depois passei quinze anos sem voltar lá.
Nestes quinze anos trabalhei em empresas de processamento de dados (era assim que se chamava a informática naquele tempo, hoje se chama de TI), em empresas de consultoria econômica, em empresas de projeto de engenharia pesada, dei aulas, fiz consultoria independente.
Muita coisa interessante. Muitos desafios. Muitas lembranças boas de trabalhos feitos, de bons companheiros com quem eu tinha feito esses trabalhos. Mas comecei a sentir que me faltava alguma coisa.
Porque um consultor, independente ou de empresa, trabalha com papel. Estuda, planeja, calcula, projeta, e produz uma quantidade de papel que depois é entregue a alguém que vai construir o que ele projetou, e que por sua vez entrega o que foi construído a outro alguém que vai fazer aquilo funcionar. E enquanto esse alguém vê o resultado de tudo isso, o consultor volta para os seus cálculos, sua prancheta, seus desenhos, seu papel.
E eu sentia falta de ver aquilo que eu projetava do lado de cá sair como uma coisa concreta lá na outra ponta da cadeia de máquinas e de poder sentir que naquela coisa estava embutida um pedacinho do meu trabalho, um pedacinho de mim. Mexer na ponta de cá e ver melhorar alguma coisa na ponta de lá.
Então um dia eu deixei a última empresa de projetos de engenharia em que eu tinha trabalhado. E um dos diretores da fábrica de tecidos, quem em outras empresas eu já tinha trabalhado para, trabalhado com, sido concorrente, trabalhado junto, no Brasil e fora dele, e que de tanto tempo atrás até hoje tem sido um daqueles meus amigos que, como cantou o Milton, é pra se guardar do lado esquerdo do peito, me convidou para ir trabalhar com ele lá na fábrica.
E quando cheguei lá para ser apresentado ao presidente da companhia, que depois virou também um desses amigos até que foi embora lá para o andar de cima, quando eu disse que tinha prazer em conhecê-lo ele me interrompeu e disse: “Eu me lembro dessa voz...” e era o gerente da fábrica para quem eu tinha feito aquele sistema quinze anos antes...
Vindo de empresas onde o pessoal era sofisticado, viajado, tratávamos com governo e altos executivos, onde eu e meus colegas todos éramos formados em pelo menos um curso superior, às vezes nas reuniões falavam-se duas ou três línguas, tínhamos terminais de computador em nossas salas (foi antes dos micros), fui para uma empresa de gente simples, funcionários que, em muitos casos, eram filhos de pais e netos de avós que tinham trabalhado ali também. E que pensavam que, pela ordem natural das coisas, seus filhos também trabalhariam ali. Gente de fábrica, no velho estilo mineiro.
E o que mais me impressionou foi como fui recebido pelo pessoal. É difícil cair de paraquedas, como eu caí, lá em cima, junto da diretoria, numa empresa tradicionalíssima, um ilustre desconhecido que não entendia nada de pano passando por cima de todo o mundo e querer que o pessoal antigo goste dele.
Pois nunca me senti tão bem onde eu trabalhava. Trabalhei lá oito anos. Dos gerentes das fábricas e os gerentes administrativos, passando pelo médico do trabalho, pelo pessoal das oficinas e do escritório, até a velha senhora que fazia o café do prédio da administração e o velho faxineiro do escritório, fiz uma porção de amigos, muitos, literalmente, para a vida toda.
Nesses oito anos esses amigos, do presidente até o pessoal da copa, fizeram muita coisa boa. Modernizaram as fábricas. Introduziram os computadores. Aumentaram o mercado de exportação. Abriram o capital da companhia. Participaram das grandes feiras nacionais, a Fenatec, de tecidos, e a Fenit, de moda.
Quando a companhia fez oitenta anos, foi escolhida como a Empresa do Ano entre todas as indústrias brasileiras.
Gosto de pensar que o meu trabalho ajudou um pouco nisso tudo.
Mas um dia os acionistas da companhia se desentenderam. Os grandes grupos acionários começaram a brigar. Filosofias diferentes, projetos diferentes, objetivos diferentes. O espírito de trabalhar juntos que a tinha guiado durante gerações já não valia mais.
Como eu era ligado a um dos grupos rivais, tive que sair. E ficar olhando, de fora, toda aquela história, todo aquele esforço de mais de oitenta anos se desintegrar.
A companhia faliu. O que sobrou foi vendido e hoje, muitos anos depois, os enormes galpões da fábrica estão desmoronando, as vidraças quebradas, os pátios desertos. A chaminé orgulhosa foi demolida antes que eu saísse de lá, quando trocaram a caldeira antiga por uma nova em outro lugar.
Dizem que agora tem gente querendo construir um shopping no lugar. Não sei.
Procurei fotografias das fábricas antigas para mostrar a vocês. Tirei muitas, muitas, durante aqueles oito anos. Só não consegui tirar uma do alto da chaminé – fui proibido de subir, tinham medo do mau exemplo. Minha fama na diretoria não era lá de muito comportado - tá bom que eu era trinta e tantos anos mais moço e durante as reformas da fábrica tinha me pendurado em lanças de guindaste para ver os telhados de cima e subido pelas obras acima com a nossa equipe de rali de moto para produzir matéria de jornal...
fotografia WBJ

Mas era época do filme, as fotografias ficaram nos arquivos da companhia, eu não fiz cópias para mim. E hoje, sabe Deus onde, e se, estarão...
Nem na internet achei nenhuma imagem das fábricas. Mas achei nos meus armários algumas de uma parte muito interessante de lá – uma usina hidrelétrica que a companhia construiu na Serra do Cipó. Esta, que eu saiba, ainda existe. Produzia energia que ia da Serra do Cipó para a fábrica de Pedro Leopoldo, e de lá para a de Belo Horizonte, numa rede de treze mil e tantos volts. Então vou contar um pouquinho dela pra vocês.
Perto da cidade de Santana do Riacho, do alto da Serra do Intendente, desce um curso de água que se chama Riachinho. No alto de um paredão de rocha com mais de duzentos metros de altura foi feita uma represa, que formou um lago.
fotografia WBJ

A água que escapa da barragem desce serra abaixo por uma garganta de pedra, alta e estreita. Eu quis entrar pela garganta para fotografá-la, mas ninguém nunca quis me ajudar a descer nas cordas (ordens do meu amigo gerente da hidrelétrica, imagino)...
fotografias WBJ
                 Mas não é da barragem que desce a água para fazer funcionar os geradores. Um túnel de quatrocentos metros de comprimento, escavado na rocha, atravessa o paredão e leva a água dentro dos canos do conduto forçado, que então cai duzentos e vinte metros até os geradores. Só a descida da entrada do túnel, para se chegar aos canos, já é uma aventura. 
fotografia WBJ

Guardei o retrato de uma polia de ferro por onde passava um cabo de aço, usado para puxar os vagonetes cheios de rochas durante a escavação do túnel. A força no cabo era tanta que o cabo de aço estampou na polia de ferro o desenho de seu trançado. 
fotografias WBJ
Do cano a água entra pelas turbinas dos geradores, passa para eles a energia da queda de mais de duzentos metros, sai por um canal  cavado na rocha e volta a se encontrar com o rio.
fotografias WBJ

Isso tudo hoje são apenas lembranças. Mas a lembrança melhor que me ficou da companhia foi a de um tempo alegre, em que fazíamos as coisas acontecer, e o melhor retrato que tenho dela está estampado no rosto feliz deste senhor, de quem não guardei o nome, músico da nossa banda de música de Pedro Leopoldo, tocando para nós numa festa de Natal... 
fotografia WBJ







28/06/2017

Títulos Acadêmicos

foto Frederico Busch (veja.sp.abril.com.br)

Heraldo Palmeira
Encontrei Afonso afobado. Obra do acaso em plena avenida Paulista. Afinal, quem vive em Sampa um dia passa por ali. Talvez, por isso mesmo, eu tenha escolhido aquele hotel da Paulista para todas as vezes que estava na cidade.
Fazia tempo que não nos víamos, nós que havíamos sido muito próximos nos tempos em que vivi na cidade pela primeira vez, idos dos 80.
Tivemos tempo para um café no Starbucks ali perto e marcamos jantar para a noite seguinte. Como não poderia deixar de ser, direto no Gigetto velho de guerra, ainda na Avanhandava, com aqueles pães maravilhosos de entrada em seu ambiente enorme e retrô, e repleto de boas histórias da Pauliceia Desvairada.
A certa altura da conversa, pães servidos, azeite e sal à mão, ele reclamou da nova namorada. Bem mais nova que ele, ainda beirando os 30, orgulhosa do mestrado e iniciando os movimentos para o doutorado. Ele não se conformava que ela, que gostava tanto de água com gás, nunca tivesse ouvido falar em Perrier. “Como é que essa mulher não conhece a francesinha verde?” – perguntou-me indignado. “Tem mestrado na USP e vai fazer doutorado por lá!” – emendou irritado.
Tentei ponderar utilizando a lógica dali mesmo da rua Avanhandava. Quem, nessa faixa de idade mais nova, tem idéia do que significou o Gigetto na história do teatro e da melhor boemia paulistana?
Procurei relativizar a chateação do meu amigo me apoiando na mudança definitiva nos costumes, na forma atual de as pessoas se relacionarem com suas preferências. Para nossa geração, os endereços e as marcas dos velhos tempos, que ainda sobrevivem, são como santuários para onde sempre rumamos sem pestanejar. Talvez em busca de reviver certas felicidades adormecidas ou quase perdidas. As novas gerações têm outros interesses. Preferem se guiar apenas pelo que está bombando naquele exato momento. Sem esses nossos vínculos duradouros que provocam até dores de saudade.
“Como pode uma socióloga que se enche de títulos acadêmicos não compreender o cardápio, a decoração dos restaurantes e a própria rua Avanhandava como manifestação cultural fundamental de uma São Paulo cosmopolita?” – Afonso estava irredutível listando os pecadilhos da moça. “Esses meninos de hoje em dia não sabem nada de nada”.
Tentei contemporizar, lembrar a ele que nossa geração era movida por outros sentimentos, outras formas de encantamento. O sistema de comunicação era lento e romântico, muito diferente desse inferno midiático de hoje. Os ídolos do nosso tempo eram muito mais duradouros do que essas celebridades instantâneas e rarefeitas de agora, que nunca sabemos direito quem são.
Quando, agora, teríamos uma Marilyn Monroe povoando os sonhos e os desejos mais secretos de todos os homens do planeta durante anos a fio? Não vivíamos esse frisson de milhares de novidades por minuto que temos hoje. E nos dávamos o luxo de criar mitos deslumbrantes e duradouros. Mas ela também derrapava, tinha seus engasgos culturais. Ninguém se importava com isso.
A mesma deusa que foi sondada pelo armador grego Aristóteles Onassis para casar com o príncipe de Mônaco. O mesmo Onassis que queria manter sua hegemonia nos negócios a partir daquele paraíso e tratou de resolver o problema do solteirão Rainier.
Como não fazia a menor idéia de onde ficava o principado e queria saber se “o tal de Mônaco” tinha dinheiro, perdeu a vaga para uma atriz então relativamente conhecida chamada Grace Kelly. Americana, católica. E um pouco mais culta.
Afonso manteve silêncio absoluto me ouvindo desencavar essas passagens antigas. Parou de se queixar da namoradinha, quase doutora da USP, entretido com historietas que só interessavam a dois homens de meia-idade em crise de saudosismo como nós.
Marilyn, sabemos hoje, andou pela sarjeta desde cedo, enfrentou vícios, ansiedade, depressão e morreu entupida de remédios no meio de uma luta sem saída entre Norma Jean, a dilacerada, e Marilyn, a deusa decadente do cinema.
Marilyn, com o mundo aos seus pés, não sabia sequer o que era Mônaco, quanto mais onde ficava. E a gente condescendia. Por que nossa quase doutora da USP não pode ignorar a Perrier? Quem sabe, não conhece a Evian? Sem gás, mais encorpada, garrafa transparente... E daí?
Disse a Afonso que nossa guerra contra a ignorância desses acadêmicos de papel está perdida. Na verdade, temos algo muito mais importante para nos aborrecer doravante, no momento em que nossa geração já está avistando os primeiros sinais da velhice.
Por ora, vemos apenas seus contornos e fazemos o possível para que permaneçam distantes. Mas começamos a adoecer definitivamente – artroses, visão comprometida, insônia, pequenas dificuldades para fazer coisas até então tidas como simples...
É como se mudássemos de emprego para conviver com novos colegas de cotidiano, que atendem por nomes inconvenientes como consultórios, exames, fisioterapia, dieta, controle de taxas, remédios, exercícios físicos chatíssimos...
Afonso e eu nos despedimos fervorosamente, sem saber se nos veríamos de novo. Tínhamos pela frente algo muito maior do que uma simples água engarrafada, esse prazer mundano que sai na urina.
Queria muito saber o que meu amigo pensa a respeito de, depois de tanto tempo, o Gigetto ter escorregado do seu reino para uma ladeira do Bixiga. Eu me limitei a uma última visita de despedida. O velho lugar de antes está perdido. Sobrevive nos fantasmas da memória.


26/06/2017

Toda A Leiteira

Vermeer - A Leiteira - 1657 (Google Art Project - wikimedia commons) 

Moacir Pimentel
A Leiteira é retratada como uma garota jovem, de rosto comum e largo de camponesa e absorta no seu ofício tal como acredito que Vermeer esteve enquanto a pintava.
A concentração dessa jovem robusta executando, com toda a atenção, a tarefa de despejar o leite na vasilha de barro, contribui para a impressão de quietude que a cena passa. O que o pintor nos sugere é que o único ruído nessa cozinha é aquele do leite caindo de um recipiente no outro. O ambiente é profundamente íntimo e o tempo nele parece imóvel.
Essa mulher faz o seu dever de casa, mas há uma sensação de luminosa quietude, de um corpo habitado por uma alma, de uma casa onde mora uma família, de sacralidade temporal.
Discordando de muitos especialistas, acho que nessa Leiteira não há vislumbre de sorriso, nem mesmo de um daqueles no estilo da Mona Lisa. Com metade do rosto na sombra, é impossível ter certeza se a Leiteira está perdida em devaneios e muito menos sobre o que a moça pensa.
Tudo o que é evidente para mim é que a garota não pode derramar o leite fora da tigela. Mas muita gente boa jura que ela está sorrindo sutilmente, meditando sobre algo diferente do que está fazendo, como todos nós fazemos quando realizamos tarefas rotineiras.
Em nenhuma outra tela de Vermeer uma outra figura é tão escultórica quanto essa Leiteira nem outros objetos são aparentemente tão tangíveis. Coexistem nessa cena sensações táteis e ópticas.
Na arte da pintura estamos mais acostumados com as abordagens ópticas à realidade, em vez das abordagens táteis. Mas nessa obra de Vermeer é como se pudéssemos tocar a figura, rasgar o pão e beber do leite sob a luz do dia nascendo na janela através dessa fresta que, muito inteligentemente, nos mostra primeiro a intensidade da luz do dia lá fora, antes dela se espalhar ao longo da parede caiada no fundo e da outra parede mais sombria e mofada que recua à esquerda.
Nesse espaço pictórico que tem inúmeras características dignas de nota pode-se sentir a umidade da sala, sob a luz natural do sol, e é quase palpável essa jovem criada despejando suavemente leite fresco e cremoso de um belo jarro para outra vasilha de barro feita à mão.
Essa é uma imagem tão natural e é tão rica em seus detalhes que você pode quase sentir a textura áspera da parede e da  cesta, a superfície ligeiramente porosa da tigela que, juntamente com os pontos de luz utilizados aqui e ali dão ao quadro uma extraordinária vitalidade.
A composição é uma alternativa artística que parece tão natural que é como se a gente tivesse atravessado a porta da cozinha e se deparado não com a realidade mas com uma imagem construída: a mesa, o chão e a janela são retângulos que equilibram a figura triangular da criada.
A intenção de Vermeer ao pintar tal cena foi dar ao observador a sensação de estar sentado à mesa, em uma cadeira no primeiro plano olhando para cima para contemplar a Leiteira. A forma como ela se eleva como uma escultura acima do nível da mirada dá-lhe uma presença dominante, uma espécie de dignidade. Só falta a quem observa dar-lhe bom dia, iniciar uma conversa e tentar conhecê-la, mesmo que meio intimidado por essa figura que sabe exatamente o que faz e está ocupada demais para papos furados (rsrs).
Tudo na tela gira em torno do jarro de leite, conectando e contrastando a natureza dinâmica do seu derramamento com a natureza estática da sala e da natureza morta sobre a mesa.

Enquanto a Leiteira é vista de baixo para cima, a superfície dessa mesa foi pintada de um ponto de vista ligeiramente mais elevado, além de estar inclinada para a frente, de maneira a propiciar ao observador a visão clara dos objetos à mostra. A sutil discrepância de perspectivas permite que Vermeer controle o tema e a visão do público.
Sabemos que Vermeer removeu impiedosamente qualquer coisa que pudesse desviar a atenção dessa ação central. De acordo com pesquisas de raios-X, a pintura originalmente continha dois outros objetos: um grande mapa na parede e uma cesta de roupas, ambos situados atrás da Leiteira e posteriormente apagados.
Vermeer era considerado um mestre na observação do cotidiano e conhecido por ser atento aos mínimos detalhes de uma cena. Isso é evidenciado na obra pelos dois pregos na parede. Veja:

A parede lisa por trás da figura absorve e capta a essência completa da luz que cai sobre ela e nesse universo destacam-se o pote de cobre altamente polido e a cesta pendurados nela e, mais acima, dois simples pregos um deles contemplado até com a sua sombra.
Vermeer é identificado pela sutileza no trato da luz, pela variação dos valores tonais, pelo uso do claro-escuro. Note que a luz que vem da janela se reflete diretamente sobre o rosto da Leiteira em sombras pálidas, criando um efeito de tridimensionalidade. A janela é a única fonte de luz do cômodo e é a iluminação proveniente dela que realça o recipiente de latão sobre a parede sombria.
Assim a janela também se torna um dos temas centrais desse quadro. Veja como Vermeer deu a máxima atenção a cada detalhe dessa janela rústica como, por exemplo, o pedaço de vidro quebrado ou a irregularidade da moldura. As janelas se tornariam nos trabalhos mais maduros do artista tão estilizadas geometricamente que em alguns casos elas parecem obras de arte abstratas em si mesmas.
A simplicidade do corpete amarelo e do avental azul cintila para nós, bela não por si mesma mas porque a luz inventada por Vermeer faz tudo brilhar e compartilhar o próprio brilho.
A leiteira usa grossas roupas de inverno pintadas com espessas pinceladas: uma blusa de camurça e um avental azul sobre uma saia de lã vermelha. As vestes têm um sentido muito tátil, a rugosidade do couro e tecitura dos fios quase presentes na tela resultando de várias e camadas de tinta aplicadas até dar às peças a textura áspera necessária. Veja como as cores são essencialmente as primárias: amarelo, vermelho, azul. A única mistura é o verde que aparece nas mangas da Leiteira. Tudo isso cria uma sensação de paz, harmonia e tranqüilidade.

Na mesa e bem ao lado da tigela rústica se encontram outra jarra de um azul profundo iluminado por desenhos brancos, uma cesta de pães de aparência crocante e, mais à direita da mesa, o que nos parece ser pedaços de pão dormido com os quais a moça pretende fazer provavelmente uma clássica receita da culinária local.
A variedade e a quantidade de pão sobre a mesa e o extremo cuidado com que a moça derrama o leite na tigela são elementos que dão grande significado à composição final pois sugerem que ela está fazendo o famoso pudim de pão – um prato básico da mesa holandesa! - para não desperdiçar o pão dormido, e vertendo o leite atentamente para nem perder a medida certa nem deixar cair na massa a pele formada em cima do leite e assim estragar a receita. Como Vermeer tinha que alimentar suas onze crianças então essa criada está fazendo algo muito prático e que faz todo sentido.
É uma cozinha bastante espartana, decorada apenas pelas cestas e o vasilhame ao lado da janela à esquerda e pela pequena caixa de madeira, na verdade um aquecedor de pés ali no chão à direita.
Visto de longe, o pão na cesta aparece de forma convincente e realista, ao passo que, se observado de perto, é possível ver claramente que ele foi elaborado por incontáveis salpicos de tinta. O desenho formado no pão e na cesta por tais pontos brilhantes e grossos de tinta mais clara sugere luzes cintilantes e texturas ásperas ao mesmo tempo.
A cesta e o objeto de cobre ao lado da janela são objetos usados para fazer compras no mercado e, portanto, são ambos elementos relacionados à temática da pintura: o leite. A cesta é pintada usando o branco, o ocre e o preto, que eventualmente se misturam para imitar o vime. Isso me faz pensar que Vermeer usou essas três cores repetidamente na pintura. É provável que ele voltasse sua atenção para cada detalhe, deliberadamente colocando os objetos e escolhendo a moldura da leiteira de acordo com um determinado espectro de cores e padrão de textura.
Porém...
Uma obra de arte não é apenas uma mera pintura em que determinada imagem é representada. É também uma maneira de representar a realidade, capturando a personalidade do pintor em cada pincelada e até mesmo refletindo a mentalidade e as preocupações de um determinado tempo. Telas são como páginas de um diário, como cartas secretas. Conhecê-las é entender tanto o artista como o que está além dele. Sempre vale a pena aprofundar a análise de obras de arte e contextualizá-las para examinar seus mistérios e motivos ocultos sem esquecer jamais do poema do Drummond para o bruxo do Cosme Velho – o grande Machado de Assis !- no qual o poeta dizia que Marcela ria “com expressão cândida (e outra coisa)”.
Devido às fortes doutrinas do calvinismo, os artistas da época não podiam retratar o sexo em suas pinturas. No entanto, Vermeer soube contornar os censores deixando nessa obra de arte símbolos eróticos sutis - por favor capriche no sutil! - que evocam a luxúria ou a sexualidade feminina.
Sucede que as leiteiras e as moças do mercado assim como as criadas domésticas carregavam, desde o século XV, a fama de serem predispostas a algo mais do que os afazeres dos seus ofícios. Elas tinham uma reputação de disponibilidade física e sexual.
Parece-me evidente que Vermeer estava bem familiarizado com tal fato da vida já que as supostas predisposições amorosas das criadas já tinham servido de tema - pelo menos nos dois séculos antes do seu tempo! - para quase todos os pintores holandeses em obras que variavam de tom, indo do obsceno ao vagamente sugerido, do grosseiramente erótico ao sutilmente sugestivo, como fez Vermeer nessa pintura na qual os estudiosos são unâmines ao afirmar que existe uma mensagem erótica secreta com o objetivo de despertar a libido dos observadores.
Segundo os doutos, na Holanda seiscentista, a forma da jarra e o derramamento do leite tinham conotações lascivas, o aquecedor de pés no chão e os carvões reunidos dentro dele eram símbolos muito comuns dos sentimentos amorosos e da paixão ardente e oculta de uma mulher por seu amado porque aqueciam-lhe não só os pés, mas tudo sob as longas saias de então (rsrs)
Ora, Vermeer sabia que os espectadores da tela estariam cientes dessa longa tradição. Assim, ele se beneficiou da reputação das “leiteiras” e da tradição artística para sugerir sutilmente que o romance estava na mente da sua personagem. Tem mais “sutilezas”. Se tem uma coisa que aprendi nessa vida é que, assim como as mulheres, também os historiadores da arte quando procuram... acham.
Na parte inferior direita, mais precisamente no rodapé da parede traseira atrás da moça, vemos uma fileira de azulejos de Delft, uma cidade famosa por sua cerâmica azul e branca. Um dos azulejos no friso é decorado pela figura de Cupido, com seu arco estendido na frente dele, simbolizando o amor, a atração e a potência sexual. Em seguida – dizem! - noutro azulejo vê-se a imagem de um homem de pé com um cajado e o que parece ser uma mochila nas costas, possivelmente um viajante e, nas horas vagas, o amante da retratada. Há ainda um terceiro azulejo mas o desenho nele é ilegível. De forma deliberada (rsrs)
A justaposição de uma leiteira, de um Cupido, do arco e da flecha, da figura de um viajante e do pequeno aquecedor aos pés da figura feminina eram, tanto tempo faz e ao que parece, uma óbvia sugestão de que a moça estaria tendo pensamentos quentes sobre um amor ausente. À época tudo isso era nitroglicerina pura! (rsrs)
Sentado diante do meu teclado, aqui no século XXI, eu sinceramente acho tais teorias “sexuais” para os motivos dos azulejos academices fantasiosas e muito divertidas. Até porque enquanto existir o homem sobre a terra rolará o erotismo e enquanto o mundo for mundo homens olharão para mulheres e vice versa e não para supostos azulejos “pornográficos” que eram produzidos em série pelas cerâmicas de Delft e moravam em todos os rodapés que protegiam o gesso de todas as paredes do dano diário de todas as vassouras em todos os lares holandeses de então.
Para mim o corpo da leiteira é o centro de atração do espectador: a touca branca cobrindo-lhe os cabelos, a espessura de sua cintura, as mangas enroladas de sua túnica revelando os braços grossos, o contraste entre o couro áspero da roupa com a nudez carnuda e pálida dos antebraços expostos, os ombros arredondados. Ela não é uma beleza delicada, nenhuma abstração idealizada, mas uma pessoa real e forte de carne e osso, uma mulher de verdade do seu tempo.
É claro que, assim como foi o caso de outras mulheres jovens na sua obra, Vermeer trata um tema bastante comum, de uma forma incomum e única e que sim, essa Leiteira pode ter sido idealizada para encorajar as fantasias de um observador. Mas terminou foi por incentivar a criatividade dos especialistas em pintura.
A “sutileza” de Vermeer ao evocar o erotismo com esses símbolos tão pueris que hoje são vistos como simples objetos domésticos, na minha opinião, só seria entendida na Holanda do século XVII por observadores sofisticados e cultos conhecedores de arte, como por exemplo o futuro dono da tela Pieter van Ruijven, com quem o pintor deve ter discutido seus detalhes.
Para um homem do povo, para os marinheiros e mercadores e burgueses, tais sugestões de sexualidade não significavam nada e eram um elemento de “fantasia” tão eficaz quanto as sombras nas paredes caiadas.
A Leiteira só se tornou um sucesso dois séculos depois de ter sido pintada, durante o século XIX quando foi percebida e traduzida como um símbolo da virtude doméstica talvez devido às coincidências entre a moral vitoriana de então e a ética holandesa do século XVII.
Os críticos do século XIX estavam essencialmente corretos sobre o significado desse quadro enganosamente simples que retrata a própria essência da virtude caseira e o cerne bíblico do protestantismo:
“Com o suor do teu rosto comerás o teu pão”.
Há uma escultura da Leiteira e sua mesa na cidade de Delft, em tamanho natural, traduzida em uma espécie de abstração concreta, mas perfeitamente reconhecível.
O fato é que desde a metade do do século XIX a Leiteira passou a ser vista como uma espécie de heroína do povo, uma pessoa boa e decente e direta, uma mulher da classe operária extremamente diligente, que executava feliz da vida um trabalho duro e que era muito boa no que fazia: tomar conta de uma tradicional família holandesa.
É bem verdade que o trabalho árduo é expresso em toda a composição, que ao contrário de outras pinturas de Vermeer, não faz absolutamente nenhuma concessão à aparência ou ao conforto. Em vez disso, olhamos para uma cozinha de paredes ásperas, pão rústico, madeira nua, cestos grosseiramente elaborados e uma empregada doméstica com características contundentes focada na reciclagem de alimentos obsoletos para fazer um prato apetitoso para os patrões. Só que Vermeer, ao contrário de seus colegas das tintas, trata a jovem com apreciação e dignidade.
É importante saber que já se pensou diferentemente sobre essa Leiteira quando ela foi pintada do que pensam hoje e diariamente as milhares de pessoas que a estão apreciando na exposição do Louvre. Mas acho que a primeira coisa que todos sempre notaram e notam e notarão ao contemplar a Leiteira é o seu ilusionismo surpreendente, a atmosfera caseira obtida pela natural luz do dia, as formas de foco suave, a figura e os objetos que parecem morar no espaço e fazem da cena uma visão convincente.
O ilusionismo de Vermeer, um dos grandes mestres da luz, foi aquilo que transformou A Leiteira em uma obra-prima. Hoje pensamos na arte, de certo modo, como o oposto da realidade fotográfica, mas na época de Vermeer, ela era entendida como um novo estilo e uma criação do artista.
Assim, todo esse ilusionismo e o realismo criado por ele, tem sido interpretado - desde o colecionador seiscentista aos leigos do terceiro milênio - como um exemplo de virtuosismo e gênio artístico.



24/06/2017

Peripécias em Gargaú

imagem Wikipedia


Antonio Rocha
Como falei antes, ficamos, eu e Heloisa, na casa de uns amigos em Gargaú, no litoral norte do Estado do Rio de Janeiro. Município da próspera e bonita cidade de Campos. Era uma pequena aldeia de pescadores na Foz do Rio Paraíba do Sul. Pegávamos uma canoa, cruzávamos o Rio e do outro lado estávamos na cidade de São João da Barra. Terra do Conhaque de Alcatrão de São João da Barra, o Conhaque do Milagre. No inverno eu gostava de misturar conhaque com mel, para esquentar. E, de fato, era milagroso.
Foi uma semana lá. Era um vento impressionante, o vento cantava nas portas e janelas e levantava uma poeira barrenta. A água do Rio também era da cor do barro e o encontro das águas com o oceano era bonito. Formavam pequena pororoca. A água do Rio andava um pedaço por dentro do Oceano em sua cor barrenta.
Pouquíssimas casas na beira do mar, a concentração maior era no lugarejo, no povoado. Perto da casa onde estávamos hospedados havia um pequeno botequim feito de bambu. Descobri que o dono era um nordestino e logo na primeira conversa me identifiquei como pernambucano. E então ele me perguntou:
- Se você é pernambucano, então é cabra da peste, igual eu que sou nordestino.
Concordei e, ingenuamente alimentei a conversa:
- Então vou fazer um teste para saber se você é homem mesmo, se você é macho.
Sorrindo aceitei o inesperado desafio:
- Olha, até hoje, ninguém aceitou disputar comigo provar as batidas que eu faço.
Infantilmente aceitei, sem saber como eram as tais batidas. Então ele me levou dentro do botequim e me mostrou um litro de cachaça com variados mosquitos dentro. Claro todos mortos. Achei estranho, mas eu já havia concordado com o desafio.
Os dois litros de cachaça seguintes, tinham cada um, uma cobra dentro, também mortas. Cheguei a pensar que se o veneno das cobras se misturassem com a cachaça, e certamente estavam misturados era beber e morrer. E o batida de mosquitos não me apeteceu nem um pouco. Continuei rindo e ele perguntou:
- Se você é homem mesmo, como disse, se você é macho, você tem que beber. Agora não pode mais falar não. Curiosamente ele não bebeu e eu nem pedi que ele provasse antes.
Se o dono do botequim era doido, eu era mais doido ainda. Claro que eu não ia beber aquilo, mas como sair do desafio, depois de ter dito sim... palavra de homem...
Rindo fui para casa e lá contei o fato ao dono que nos abrigava e exclamou preocupado:
- Você é maluco ! Ele tem fama de já matado mais de um na peixeira.
- Eu pensei que era brincadeira.
- Brincadeira nada, se você deu a sua palavra de homem vai ter de cumprir, caso contrário ele sai correndo atrás de você com uma peixeira...
Pensei: sou jovem e ele já está na meia idade, meio barrigudo, posso correr mais. Na região não tinha posto de polícia, nem delegacia nem nada...
Então tive mesmo que apelar para os meus protetores budistas e solicitei que uma nuvem de esquecimento envolvesse o dono do botequim e esquecesse por completo o nosso diálogo.
Coincidência ou não, acho que o botequineiro esqueceu a façanha. Não entrei mais lá, ele podia se lembrar. Passava na rua para lá e para cá e... estou hoje aqui contando o susto.
Aprendi a lição e modifiquei meus conceitos de machismo e afins.


22/06/2017

La Boquería de Barcelona

fotografia Moacir Pimentel


Moacir Pimentel
O rio de pessoas que avança continuamente pelas Ramblas – a avenida de pedestres mais famosa de Barcelona - só para quando a fachada metálica do Mercat de la Boquería aparece encravada entre os edifícios históricos. Mas a sua simplicidade não antecipa o seu intenso mundo interno ou a extensa história da qual é consequência.
Há algo sobre a terra ancestral em um mercado de alimentos. É como se olhar para as pilhas de batatas e tomates e legumes fizesse a gente se sentir como se os tivesse plantado e colhido.
Creio que me encantei pelos mercados da vida aos vinte anos, em Roma, onde costumava ir de manhã muito cedo ao mercado de Campo de Fiori para, depois de dar bom dia à estátua do Giordano Bruno, comprar os ingredientes para as refeições diárias do velho senhor para quem trabalhava.
Depois, passei a comprar roupas de segunda mão e a negociar preços no velho mercado de Porta Portese e então vieram as medinas árabes, os coloridos e espetaculares mercados de rua indianos e aqueles fluviais da Tailândia e pronto! Fiquei viciado.
Dizem que não há maneira mais rápida de se aprender uma língua estrangeira do que namorar uma nativa falante. É verdade (rsrs) Da mesma forma, a culinária é o caminho mais curto e prazeroso para se entender um povo. O alimento é sobre o cotidiano, sobre a lida e diferentemente da filosofia e da arte que apenas valorizam a vida, ele tem o valor da sobrevivência.
Os mercados públicos possuem algo de vital, algo de saudável e sustentável ao se escolher cuidadosamente ingredientes frescos e saborosos e levar o necessário para o preparo de refeições caseiras. Eles têm uma qualidade a um só tempo animada e relaxada, uma lentidão agradável que torna divertido estar lá e difícil dar as costas aos vendedores animados, aos produtos de qualidade e aos aromas gloriosos.
Mas não são apenas os produtos que tornam os mercados especiais. Nesta época plástica, quando quase tudo que consumimos vem com uma data e um prazo de validade é como se nós perdéssemos o contato com nossos sentidos. Em um mercado nós voltamos a olhar, tocar, cheirar, mordiscar, perseguindo a qualidade e implorando pela aventura do estranho e maravilhoso.
Para qualquer amante de comida – por favor me inclua na categoria - o mercado público La Boquería em Barcelona é um destino de peregrinação, um surpreendente paraíso de alimentos deliciosos capazes de tentar um santo de pedra e a mais radical das anoréxicas.
No ano 13 AC o imperador Augusto fundou a colônia Iulia Augusta Paterna Barcino Faventia. Dona Lenda insiste em afirmar que as raízes do Boquería podem ser escavadas no Barcino romano e que, no século IX, por ali já batiam ponto mercadores ambulantes de carne. Há registros históricos provando que desde 1217, no local funcionou um mercado a céu aberto. O certo é que o Mercat de Sant Josep de la Boqueria foi construído a meio caminho entre o mar e a atual Praça da Catalunya, no mesmo lugar das Ramblas onde, em 1835, fora queimado o Convento de Sant Josep. O fato é que o primeiro mercado público de Barcelona foi inaugurado em 1870.
Se tais datas forem precisas, elas fariam do Boqueria um dos mercados mais antigos ainda em funcionamento do mundo, como o Grande Bazar de Istambul. Porém e com certeza ele é um dos principais, ao lado de outros de grande estirpe como, por exemplo, o da Rue Mouffetard com sua atmosfera medieval e os edifícios que datam do século XII perto do bairro latino de Paris ou o de Les Halles em Lyons, que muitos identificam como sendo a capital culinária da França pois situa-se entre as áreas agrícolas mais ricas do país.
Ou como o Mercado Vucceria, em Palermo, na Sicília, maravilhoso e caótico, colorido e barulhento, que se estende por quilômetros e cujas origens remontam ao regime sarraceno da Sicília no século IX.
Dignos de menção honrosa entre os italianos são ainda os mercados mal cheirosos de peixe da Porta Nolana, sob um dos portões da muralha da cidade de Nápoles e o apaixonante Pescheria, escondido sob os arcos ao lado da Ponte Rialto em Veneza onde as gôndolas carregadas de produtos frescos brilham sob o sol nascente.
Para não falar dos incríveis e exóticos mercados fluviais de Bangkok e do Viktualienmarkt em Munique, onde se toma cerveja de trigo e come-se as saborosas linguiças de porco com saurkraut; do londrino Borough Market, inundado por cogumelos selvagens, enguias defumadas e muita cidra; do Központi Vásárcsarnok, o mercado central de Budapeste que mora em um edifício Art Nouveau do século XIX, foi desenhado por Gustave Eiffel e cujas barracas vendem de cebolas a caviar russo.
Sim, eu gosto imenso de mercados. E confesso que um dos meus prediletos é justamente o Boquería mesmo que ele tenha se tornado uma das principais atrações turísticas da cidade por algumas razões simples: localiza-se na artéria mais famosa de Barcelona – Las Ramblas! – a exibição de todas aquelas coisas comestíveis é de impressionante beleza, seus produtos são impecáveis e por lá come-se muito bem e barato.
Então apesar do turismo circundante, o Boquería ainda vale a visita porque quando se vê tudo aquilo... Caramba! É amor à primeira vista!
Ao entrar no mercado, de saída, somos surpreendidos por barracas recheadas de guloseimas, doces, chocolates, pirulitos e muitas outras delícias! Já imaginou um picolé de Mojito? Aquelas são as barracas mais coloridas e mais saborosas para as fotos! Se você é chocolátra(o), muito cuidado e – atenção! - as amêndoas caramelizadas do Mercat de la Boquería são altamente viciantes!
fotografias Moacir Pimentel

Em seguida, aparecem os quiosques de frutas, verduras e legumes vendendo de tudo: das cerejas às goiabas e mangas. As frutas também são vendidas cortadas e embaladas em copos transparentes com talheres. Muito prático para quem não aguenta a tortura de ver tanta coisa gostosa sem experimentar!
Frutas exóticas como abacates e mangostins e pitaias sul-americanas e asiáticas ganham destaque nas barracas. Os vendedores de frutas não param um minuto sequer ocupados em colocar as cerejas brilhantes em caixas e a preparar maravilhas com as pitaias, o que nos dá a certeza de que são movidos pelas vitaminas que vendem.
Todos são especialmente cuidadosos na apresentação dos produtos e portanto encontramos arranjos e combinações estupendas de formas e cores, das laranjas e bananas às uvas e maçãs de muitas cores.
Este capricho estético - o que não exclui os deliciosos sabores de todo o mundo - se repete em todo os quiosques, desde aquele mais sofisticado que vende os vinhos D.O.Q de Priorat - a única região vinícola espanhola que, juntamente com a de Rioja, obteve a denominação prestigiada de "qualificada" - até a banca modesta que comercializa bacalhau salgado.
Ao lado das barracas de frutas moram os quiosques dos sucos de variados e inenarráveis sabores e misturas. Já experimentei um de mirtilo com coco. Pense em um casamento estranho mais interessante! Durante nossas estadias em Barcelona, vira e mexe vamos ao mercado só para isso: tomar um delicioso suco logo ali na entrada.
E o que mais? São cerca de trezentos quiosques ao longo de onze corredores nos oferecendo os manjares dos deuses: pernas de porco curadas penduradas como cortinas; montanhas de nozes, e amêndoas e castanhas; estranhos cogumelos almiscarados; frascos gigantescos de cascas de frutas cristalizadas, chocolates de todos os feitios e recheios.
As pessoas ficam ali paradas no vão central, meio atordoadas, incapazes de decidir se seguem em frente pelo corredor onde moram os picolés e sorvetes em direção a outro mundo povoado pelos frutos do mar da costa espanhola e de outros mares e rios: mexilhões, camarões, ostras, navajas, almêijoas, lulas, sépias deliciosamente expostos.
O peixe é parte da dieta mediterrânica e o mercado reflete isso: entre peixe fresco, peixe congelado e salgado, há mais de cinquenta quiosques. As luzes do teto abobado que brilham sobre seis mil metros quadrados de comida se refletem nas escamas prateadas e vermelhas dos peixes de olhos claros e dos frutos do mar sendo tratados e arrumados sobre camas de gelo triturado, enquanto caranguejos vivos são pesados com destreza profissional. Olhando olho no olho dos bichos, escolhe-se o mais fresco e apetitoso.
E depois?
É só levar o salmão, ou o mojama – atum! - ou o polvo para outro quiosque muito animado - de nome La Ramba - o único lugar do mercado onde você pode levar seus próprios ingredientes para que sejam grelhados na plancha – um tipo de churrasqueira! - por uma pequena taxa. E saborear um peixe honesto com uma cerveja gelada depois de filés de boquerones – anchova! - de entrada, é claro.
 
fotografias Moacir Pimentel
Os mini polvos que fecham a montagem fotográfica acima com chave de ouro são chamados de chipirones, uma especialidade local tão emblemática da cozinha catalã quanto o polvo, o atum e as anchovas. Mas em uma das peixarias mais respeitadas do pedaço, as lulas da Dona Marta também são lendárias.
São deliciosos os quiosque de azeitonas acima do peso, onde nos deixam “provar” com fartura para descobrir que as do norte são mais amenas que as do sul, geralmente amargas e/ou picantes. E, bem ao lado, na Bacalharias Gomá, mora um rei: o Bacalla d'Importacio, claro e salgado e oriundo da Islândia.
Aparentemente os Gomá estão entre os pioneiros fundadores do La Boquería. Hoje o quiosque é o feudo de Dona Carmen que com uma cara de poucos amigos coordena o negócio de takeaway no estilo catalão: peixe e batatas fritas em cones de papelão, os pintxos – espetinhos! – e os buñuelos de bacalao. Foi ali que experimentamos pela primeira vez uma posta de bacalhau lustroso e carnudo lambuzada por um mel estranho antes de ser grelhada. Huuuum!
Quem vira à direita logo na entrada descobre os produtos do monte a começar pelos queijos. Na Boquería se tropeça em montanhas de queijos diferentes que enchem o ar com uma pungência surpreendente mas deliciosa. São queijos feitos à mão de leite de cabra e de ovelha e de vaca, e uma variedade de outros produtos lácteos recém fabricados. 
fotografia Moacir Pimentel

Dizem os safos nativos que aquilo que não se encontra na Boquería não vale a pena comer. Lá estão coisas que aprecio enormemente como as conservas e compotas caseiras e os pães rústicos de campanha. Ah, o cheirinho de pão fresco e crocante no ar. E que tal um sanduíche de cordeiro assado fatiado bem fininho? Nada disso! Eis que aparece o presunto serrano!
fotografia Moacir Pimentel

Foi na Boquería que aprendi que os melhores presuntos ibéricos têm cascas muito escuras e que a carne de porco de maior qualidade é a dos animais menores alimentados à base de bolotas de carvalho.
Entre as dezenas opções de provas e beliscadas enquanto passeamos por esse parque de diversões comestíveis não se pode pular o jamón Ibérico. Os presuntos curados ficam todos pendurados, esperando para ser cortados e nos provocando água na boca. Parecem pedir: “Provem-nos”!
Não nos fazemos de rogados e, em vez de levar para comer mais tarde no quarto do hotel, fazemos como os nativos que desfilam pelas ruas de Barcelona com cones nas mãos, só que cheios e transbordantes de jamon serrano e não de sorvete! É pegar e comer a iguaria cuja espetacular profundidade de sabor vai se acentuando enquanto mastigamos.
Quem aprecia a carne branca termina no quiosque Avinova com sua gama estonteante de pássaros, coelhos, aves de caça e caracóis oriundos da Catalunha e da França . Fazem sucesso os animais alimentados com alecrim.
Além de todas as criaturas comestíveis de duas pernas, na Boquería encontramos ovos de todas as cores e tamanhos: de peru, pato, frango, codorna, cisne ou de emu. Pois é. Eu não me contive e perguntei e trata-se de uma parente próxima e australiana da avestruz.
As horas passam rápido - e salivadas! - pelas alamedas coloridas de La Boquería, de quiosque em quiosque, de sabor a sabor, das azeitonas aos brotos de manjericão, dos ovos de codorna aos tomates maduros, dos chocolates às frutas cristalizadas e às nozes caramelizadas, dos sucos de fruta ao picolé de mojito, das vieiras às navajas, dos peixes aos leitões, das especiarias às pimentas secas.
Chama a atenção nas gôndolas além do requinte das exibições dos produtos de mar o exotismo dos frutos do monte, a variedade das carnes – corações, coelhos, cabeças de cordeiro, leitõesinhos inteiros - e tantíssimos fumados e embutidos e foie gras.
Os vibrantes quiosques de especiarias coloridas exibem uma enorme variedade de perfumados temperos: açafrão, curries indianos e malaios autênticos, ervas secas, folhas de louro enormes, tempero tikka muito rústico, que inclui pimentões secos, paprika vermelha viva, flocos de cebola e sementes de cominho picante. E, como se não bastasse a variedade de valentes temperos do vasto mundo, ainda oferecem às senhoras a oportunidade de misturar especiarias para formar seu próprio tempero especial em sacos de tecidos. Pense em um quiosque cheiroso!
Devo confessar que face a todo esse assalto aos meus sentidos, tonto diante de tão grandes e súbitas tentações, eu tenho que me segurar durante às loooongas conversas gastronômicas para não girar à esquerda e correr na direção dos bares de tapas onde se pode sentar no balcão e abrir de uma vez o expediente com una copa de Cava e dar umas deliciosas mordidas em qualquer coisa boa como, por exemplo, uma empanada!
O mercado tem dezenas de pequenos bares onde via de regra os nativos esperam de pé, para comer os quitutes preparados à sua frente como as truitas de patates ou o feijão branco típico da capital catalã preparado em panelões por senhoras usando impecáveis aventais brancos.
Aquela cornucópia bem ali no coração de Las Ramblas é também um ímã para os turistas de olhos arregalados que, em determinadas horas, superam os nativos presentes exclamando “meu Deus!” em todas as línguas do planeta azul...
“Oh My, Mon Dieu, Mein Gott!”
E fotografando o espetáculo de cores em vez de experimentar-lhe os sons cheiros, perfumes, texturas e sabores. Meus Deus, pergunto eu, como não comer um daqueles xuxos? 
Um xuxo é um cruzamento entre um croissant e um eclair vendido em qualquer café de Barcelona. E os xuxos do Juanito são os melhores da cidade. Esse tal de Juanito é uma unanimidade tão grande que, desconfiados que somos das indicações pavlovianas, sentamos pela primeira vez nos baquinhos do bar de tapas dele – o famosérrimo Bar Pinotxo! – com um pé atrás quanto a sua tão decantada “autenticidade”. Terminamos fregueses (rsrs)
Dizem que a família de Juanito Bayén, capitaneada pela senhora sua bisavó, costumava estar na rua de trás do La Boqueria às quatro da manhã cozinhando para os trabalhadores que, nas madrugadas, abasteciam o mercado na virada dos séculos XIX e XX. Hoje o Bar Pinotxo é a primeira coisa que se vê quando se entra no mercado pela entrada principal das Ramblas.
É bom demais chegar na Boqueria morto de fome às 8 horas da matina e ir direto para o Pinotxo famoso pelo café da manhã “dos campeões" que oferece no cardápio mais de uma dúzia de ovos mexidos e omeletes diferentes, servidos com aquelas torradas esfregadas com tomate e alho típicas de Barcelona. E pense em um café realmente bom! No Boquería entre uma miríade de coisas irresistivelmente boas está o café perfumado recentemente moído.
Mas o definitivo destaque do café-da-manhã no Bar Pinotxo é mesmo o substancioso prato de feijão garbanzo ao molho de sangue com chouriças e morcilas. E não faça careta! Os feijões são magnificamente temperados e se nota muito levemente o sabor sangrento (rsrs)
Quem realmente adentra o La Boquería de manhã muito cedo e antes dos primeiros ônibus de turistas, olha em volta com enorme satisfação. O Boquería não é apenas uma mistura de diferentes produtos de culturas diversas reunidos sob o mesmo teto. É uma das peças mais interessantes da arquitetura da cidade: uma estrutura de ferro enorme e ainda assim infinitamente delicada, sustentada por colunas jônicas e iluminada pela luz solar filtrada pelos gigantes paineis de vidro do teto que rodeiam uma rotunda central com cara de prima legítima das belas loucuras de Gaudí.
Com certeza no interior do pavilhão de vidro de La Boquería rolam a cada momento oportunidades de fotos memoráveis dos alimentos sazonais catalães e das pessoas que os plantam e criam e vendem nos quiosques animados, em exposições coloridas e vinhetas deslumbrantes que nos fazem querer levar para casa tudo aquilo que não podemos experimentar no local, já que os vendedores são generosos com as amostras grátis para aqueles com pinta de prováveis consumidores.
Mas mesmo que a variedade e a quantidade de produtos disponíveis seja de deixar qualquer um tonto e bobo à medida que nos dirigimos para os fundos do mercado, para longe da multidão de turistas, percebemos que a qualidade tende a subir ao passo que os preços descem.
O ambiente - o ritmo rápido, mas com um toque pessoal e amigável – é muito agradável, ainda mais se fazemos paradas técnicas nos bares de tapas para conhecer melhor tudo o que foi observado (rsrs)
Aliás um dos bares de tapas obrigatório mora exatamente na parte traseira do mercado. Viva El Quim de La Boquería, um humilde e pequeno bar nos seus primórdios que tornou-se um dos locais mais populares do mercado perfeito para um almoço de sonho. Da diminuta cozinha do El Quim saem coisas bonitas e deliciosas como, por exemplo, as tapas de lulas servidas na própria tinta beeem salgaditas ou os ovos estrelados com chipirones ou a estrela do cardápio: cinco tipos de cogumelos cozidos no Porto e servidos com cebolas e um tijolaço de fígado de pato caramelizado. É de endoidar gente sã principalmente se acompanhado por uns copos de bom tinto Rioja.
E de sobremesa? 
fotografia Moacir Pimentel

Eu resolvi “conversar” sobre o mercado de La Boquería porque li recentemente que passará por algumas mudanças. A explosão de cores e a fascinante mistura de comidas de todos os tipos — de frutas exóticas a ostras e de doces árabes a porco assado — vão continuar as mesmas, mas a Prefeitura da cidade deseja resgatar a autenticidade do mercado, já que a população reclama das multidões de turistas que impedem os moradores de frequentar os quiosques para fazer suas compras diárias.
Parte importante da cena cultural e gastronômica catalã, o mercado reduzirá gradualmente o número desses pequenos bares que vendem comida pronta, dando mais espaço para alimentos frescos, como frutas, verduras e peixes. A ideia das autoridades é limitar os pontos de degustação lá dentro, transferindo os bares de tapas para as ruas laterais do mercado, facilitando assim a circulação do público e das suas cestas de compras.
Não pretendo aqui fazer, como está fazendo a Prefeitura de Barcelona, a louvação dos demais trinte e tantos mercados da cidade, diante dos quais raramente se vê um ônibus turístico ou um japonês tomando uma raspadinha de maracujá e continuarei um fã de carteirinha do mercado com turistas ou sem turistas e recomendando veementemente La Boquería, sem dúvida o melhor naquelas paragens.
Mas tem desaparecido de lá, nas últimas décadas, a antiga camaradagem, a interação entre os vendedores e os clientes que se conhecem há anos, que persiste no entanto, em dezenas de outros mercados de bairro espalhados por Barcelona, como o Mercado Galvany, no bairro de Sant Gervasi, com seus azulejos representando frutas maduras e seus belos vitrais ou o arejado Mercado de Santa Catarina no Born erguido na década de 1870 como o primeiro edifício de ferro fundido e vidro de Barcelona ou mesmo o pequenino Mercado del Ninot, no Eixample.
No entanto, eu apoio a inicativa da Prefeitura da cidade. Gostei de ler que La Boquería não permitirá que grupos de mais de quinze turistas tenham acesso ao lugar até as 15hs às sextas-feiras e sábados inicialmente e que tais providências poderão vir a ser diárias.
Na verdade quase oito milhões de pessoas visitam a capital catalã todos os anos. E nesse número não estão incluídos os dois e meio milhões de cruzeiristas, que apenas desembarcam dos navios para passar o dia na cidade e que quase sempre acabam no Boquería. Para que você tenha uma noção do que representam tais números, o Brasil inteiro recebe cerca de seis milhões de turistas estrangeiros por ano.
A decisão da Prefeitura, é necessário registrar, foi tomada a pedido dos próprios comerciantes. Os donos dos postos de venda do mercado pagam fortunas para estar ali e os turistas, em sua esmagadora maioria, querem apenas olhar e fotografar, entupindo os corredores e impedindo a circulação de clientes.
Para quem mora nas imediações, fazer compras no Boquería se tornou um inferno e muitos velhos e fiéis clientes deixaram de frequentar o mercado há muitos anos.
Sucede que, do outro lado do Atlântico, a classe média europeia não está acostumada com a moleza, ninguém tem secretárias do lar, as pessoas vivem existências corridas e portanto fogem como o diabo da cruz de tudo que lhes complique a rotina, que inclui esfriar a barriga no tanque e a esquentar no fogão, lavar o próprio banheiro, usar o transporte público e as próprias pernas, caminhar até a padaria e o mercado para comprar o que comem diariamente, encher o tanque de gasolina com as próprias mãos.
É o preço que se paga para não conviver com algo que faz parte das nossas vidas: o cruel abismo social e, portanto, a mão de obra barata e disponível para qualquer necessidade do dia a dia.
Só que nesse ritmo simplesmente não se pode, por causa de um tipo de turismo não sustentável, perder uma hora e meia para fazer as compras que, noutro mercado qualquer, seriam feitas em meros trinta minutos.
Nós os seus fãs de carteirinha não nos privamos das maravilhas do Boquería cedo pela manhã ou à noite antes de voltar para o hotel da vez. Mas diferentemente dos nativos que para fazer suas compras só têm disponíveis a hora do almoço ou aquela corrida depois do trabalho, podemos evitar os horários de pico, chegando antes ou depois das hordas invasoras, quando os vendedores ainda acham divertido o fato de sermos “guiris” e o ambiente ainda está calmo e o movimento normal permite que as pessoas interajam e é exatamente nisso que está a graça, certo?
Mas aconteça o que acontecer a profusão de belos e coloridos e frescos alimentos, seus cheiros e cores é esmagadora e o cenário é tão bonito que enfrentaremos hoje e amanhã mesmo a maior das multidões para visitar La Boquería.