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31/05/2017

O Jardim da Rainha


fotografia Moacir Pimentel

Moacir Pimentel
Antes de relaxar naquelas cadeiras verdes que se espalham gratuitas e convidativas pelo Jardim das Tulherias e de colocar – quem sabe? - aquela garrafinha de vinho para esfriar n’água de uma das piscinas a gente olha em torno e é como se as nossas antigas aulas de história da França estivessem ali e tridimensionadas diante de nossos olhos. As Tulherias contam muitos dos capítulos da história da França.
Essa conversa começou em 1559 quando a rainha Catarina de Médicis, já viúva de Henrique II, decidiu mudar-se para o Palácio do Louvre, junto com seu filho, o novo rei François II e construir um jardim inspirado nos jardins de sua Florença natal.
Para tanto ela escolheu uma área cercada pelo Sena ao sul, a Rua Saint-Honoré ao norte, o Louvre ao leste e as muralhas da cidade a oeste onde hoje mora a Praça da Concórdia. Desde o século XII o local fora ocupado por pequenas fábricas de telhas, chamadas de tuileries. Ela mandou plantar laranjeiras e assim teve início o turbulento enredo do Jardim. 
fotografias Moacir Pimentel

Henrique IV, o genro de Catarina, construiu uma alameda plantada com amoreiras - aquela que hoje é a de Diana - onde ele esperava cultivar bichos-da-seda e começar a indústria da seda na França.
Em 1610, aos nove anos, Luís XIII tornou-se rei e transformou o Jardim em um enorme parque infantil, usando-o para caça e para a criação de animais, construindo estábulos e uma escola de equitação.
Quarenta anos depois o jovem Luís XIV contratou o arquiteto e paisagista André Le Nôtre para redesenhar o Jardim das Tulherias. Le Nôtre – que era neto de Pierre, um dos jardineiros de Catarina de Medici - trabalhou no projeto de 1666 a 1672.
Em 1667, a pedido do famoso autor de contos de fada Charles Perrault – homenageado por uma das estátuas do jardim - o Jardim da Tulherias foi o primeiro jardim real a ser aberto ao público. Mas, em 1682, o rei, furioso com os parisienses por resistirem à sua autoridade, abandonou Paris e mudou-se para Versalhes.
Mesmo assim e apesar de abandonado, em 1719, dois grandes grupos de estátuas equestres, La Renommée e Mercure, do escultor Antoine Coysevox, foram trazidos da residência do rei em Marly e colocados na entrada oeste do jardim defronte a Praça da Concórdia.
Em seguida outras estátuas de Nicolas e Guillaume Coustou, Corneille van Clève, Sebastien Slodz, Thomas Regnaudin e de Coysevox foram colocadas ao longo da alameda central.
fotografias Moacir Pimentel

         Após a morte de Luís XIV, vieram os outros Luíses e mais modificações até a Revolução Francesa e aquela multidão que, a 10 de agosto de 1792, invadiu as Tulherias. Em 1794, o novo governo encomendou a renovação dos jardins e foi concebido um jardim decorado por pórticos romanos, portais monumentais, colunas e outras decorações clássicas.
Mas tal projeto jamais foi concluído. Tudo o que resta dele hoje são duas belas e tranquilas êxedras - átrios semicirculares murados por bancos e decorados por estátuas nas piscinas gêmeas - os dois lagos menores e mais próximos do Louvre - e as muitas dezenas de estátuas trazidas de outras casas reais para decorar os jardins.
Napoleão Bonaparte, prestes a tornar-se Imperador, mudou-se para o Palácio das Tulherias em 1800, e construiu um pequeno arco do triunfo no meio da Place du Carrousel, como a entrada cerimonial de seu palácio.
Ele ainda tomou as providências para a abertura de uma nova rua na margem norte das Tulherias, defronte do Terrasse des Feuillants, que tinha sido ocupado por cafés e restaurantes. Adornada por arcadas, ela foi chamada de Rue de Rivoli, em memória da vitória de Napoleão em 1797.
No século XIX, o Jardim das Tulherias já era o lugar onde o povo parisiense ia para relaxar, encontrar-se, passear, desfrutar do ar fresco e verde, e se divertir.
Depois da queda de Napoleão, o jardim serviu de acampamento dos soldados austríacos e russos invasores. Em 1852, após uma nova revolução e a Segunda República, o novo imperador Luís Napoleão decorou o espaço com plantas e flores exóticas e novas estátuas e construiu os dois pavilhões, que hoje abrigam os acervos dos museus Jeu de Paume e Orangerie.
Em 1870, o imperador foi derrotado e capturado pelos prussianos e rolou o levante da Comuna de Paris e o Palácio das Tulherias foi incendiado tendo o Louvre, na ocasião, escapado por pouco do mesmo destino. O local onde antes se erguia o Palácio, entre os dois pavilhões do Louvre, tornou-se parte do jardim.
fotografia Moacir Pimentel

No final do século XIX e início do século XX, o jardim foi invadido por entretenimento para o público: acrobatas, teatros de marionetes, barracas de limonada, pequenos barcos nas piscinas, passeios de pônei.
Nos Jogos Olímpicos de Verão de 1900, os Jardins hospedaram a competição de espada na esgrima. Há fotos das suas belas esculturas cercadas por sacos de areia durante a Primeira Guerra e, efetivamente, alguma artilharia de longo alcance alemã aterrissou no Jardim.
Nos anos entre as duas Grandes Guerras, os prédios do Jeu de Paume e da Orangerie foram transformados em Museus e durante a Segunda o primeiro foi usado pelos alemães como um depósito para a arte que tinham roubado ou confiscado.
Durante a libertação de Paris em 1944 houve combates no Jardim e as pinturas dos lírios d’água de Monet foram seriamente danificadas. Até os anos sessenta do século passado, quase todas as esculturas eram datadas do século XVIII ou XIX: a Ninfa e a Diana Caçadora, os Tigres, a Miséria e a Medeia, o Bom Samaritano, O Centauro, a História e a Comédia, Teseu e o Minotauro, Cassandra e Palas, Caim e Abel.
Mas então chegaram os trabalhos contemporâneos de Aristide Maillol para enfeitar a Praça do Carrossel, entre o Jardim das Tulherias e o Museu do Louvre. 
fotografias Moacir Pimentel
A maioria dessas esculturas representam o corpo de uma jovem mulher que Maillol reinventou incessantemente: o de Dina Vierny, a modelo que se tornou sua musa. Ela tinha apenas quinze anos quando Maillol a conheceu e continuou inspirando-o até o final de sua vida.
Em 1964, vinte anos após a morte de Maillol, as esculturas, doadas por Dina ao governo francês, foram instaladas nas Tulherias: Rio, Montanha, Ar, Vênus, Mediterrâneo, Banhista, a Noite, o Verão e muitas mais.
A magia dessa maravilhosa coleção vem do equilíbrio sutil entre as suas força, energia e sensualidade maravilhosas. Gosto particularmente das costas das figuras de Maillol.
Hoje quatro maravilhas de Rodin – o Beijo, a Sombra, a Meditação e a Eva – fazem companhia às velhas esculturas de mármore.
 
Rodin - O Beijo (fotografia Moacir Pimentel)
E, bem assim, às coisas mais modernas de Jean Dubuffet, Henri Laurens, Étienne Martin, Henry Moore, Germaine Richier e David Smith. E até mesmo a obras de artistas vivos - como é o caso das estranhezas de Magdalena Abakanowicz, Louise Bourgeois e Tony Cragg e da Pincelada Nua de Roy Lichtenstein aí embaixo ao lado do prezado Charles Perrault.
fotografias Moacir Pimentel

             O jardim foi transformado em um Museu de esculturas a céu aberto, obras de várias épocas e estilos, de seculares mármores à arte contemporânea. São mais de uma centena de estátuas à volta de canteiros e gramados, adornando caminhos perpendiculares e sombreadas alamedas – como a de Diana e a de Castiglione - e uma avenida central o atravessa do leste ao oeste unindo uma piscina circular na sua extremidade oriental a uma outra piscina octogonal na sua extremidade ocidental à beira da Praça da Concorde
As linhas gerais do layout de Le Nôtre no Jardim das Tulherias permanecem: a alameda central, que leva os olhos para os Champs Elysées, as árvores plantadas no século XIX e XX bem no meio dos jardins, os terraços e passeios que fazem fronteira com o Sena e a Rua de Rivoli - o terraço do Bord-de-L'Eau e aquele des Feuillants - e as três piscinas perto do Arco do Triunfo do Carrousel.
 
fotografia Moacir Pimentel
Os jardins de Le Nôtre foram concebidos para serem vistos de cima, dos palácios das Tulherias e de Versalhes, espaços decorados por sebes formando labirínticos desenhos de flores e arabescos.
Mas nos tempos de Le Nôtre, as Tulherias eram principalmente cascalho e pedra, cercadas pelo campo, enquanto que hoje é um jardim urbano tão verde quanto possível. Quando se olha para o jardim se tem a impressão de que a grama está comendo os caminhos e se experimenta a vontade de descobrir novas perspectivas ou ler calmamente sob uma árvore.
Se com André Le Nôtre, com base na simetria, o princípio da ordem tentou se impor sobre a natureza, os habitantes do século XXI gostam de caminhar cercados de vegetação e de arte a céu aberto.
Os mais de vinte e dois hectares do Jardim das Tulherias, cobertos por mais de duas mil árvores e cem mil plantas e flores perenes e redefinidas a cada ano, nos ensinam que Paris não é só histórica e artística. Às vezes mesmo no seu coração a cidade nos cerca com a natureza deslumbrante contida e cuidada amorosamente.
Assim, embora o Jardim esteja associado a Le Nôtre e ele fosse um gênio com o espaço e o seu jardim fosse uma caixa geométrica em que tudo estava perfeitamente organizado em metros cúbicos e não metros quadrados, embora o traço dele, as suas linhas de visão tenham mudado pouco em quatrocentos anos, não faz sentido tentar amarrar um jardim a um determinado tempo.
Jardim nenhum pode pertencer a uma era apenas e então lado a lado coexistem perfeitamente as exêdras romanas, os mármores oriundos de Marly, os tigres e tigresas antigos e esculturas contemporâneas, incluindo: A Confiança de Daniel Dezeuze, Força e Ternura de Eugène Dodeigne e A Árvore Vocal de Giuseppe Penone. 
fotografias Moacir Pimentel
O Jardim é um ótimo lugar para se estar. Pudera! Cercado que é por arquiteturas icônicas não importa o ângulo do olhar, as vistas sempre nos tiram o fôlego.



14 comentários:

  1. Mônica Silva31/05/2017, 08:49

    Amei! Estou ficando mais apaixonada por Paris a cada artigo. As fotos são lindas, Moacir. Depois da visita relâmpago que o nosso grupo fez ao Louvre o guia levou até o Arco onde deu as explicações e liberou 15 minutos para as fotos. Lembro de ter visto algumas estátuas de longe mas não entrei no Jardim. Fui correndo fotografar a pirâmide. Mas da próxima vez que for a Paris já tenho o roteiro perfeito. Obrigada!

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    1. Moacir Pimentel01/06/2017, 07:44

      Mônica,
      Fico satisfeito por você apreciar os textos parisienses , mas sou terminantemente contra visitas relâmpago. A dica é estudar antes e viajar sem pressa e relógio, sem guia e roteiro e sem medo de ser feliz. Obrigado a você pela leitura e comentário.

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  2. Flávia de Barros31/05/2017, 12:07

    Moacir,

    Você tem razão quando diz que o jardim é um museu a céu aberto no coração da cidade. Este belo artigo é para ser lido e relido muitas vêzes devido a quantidade de informações históricas e obras de arte mostradas. Destaco as suas fotos do paisagismo verde o Gato de Botas no monumento em homenagem a Perrault e o Beijo de Rodin. Recomendo muito o vídeo. Quando ele termina do lado direito aparece outro sobre o jardim no outono que também merece ser visto.


    Um grande abraço para você

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    1. Moacir Pimentel01/06/2017, 07:48

      Flávia,
      Acabo de assistir o vídeo que você recomendou. Sim, com certeza o Jardim é bonito vestido pelos tons amarelo, laranja e vermelho do outono , mas sinto falta do verde luxuriante e do azul profundo do céu de verão. Você me lembrou de uma amiga que tem a mania de “mitigar” os textos. Dessa pauta poderíamos pular com Le Nôtre para Versalhes ou - quem sabe?- olhar mais de perto as mulheres de Aristide Maillol.
      Obrigado e outro abraço para você

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  3. 1) O texto do Moacir é sempre um banho de cultura.

    2) E hoje fui ao dicionário procurar Exêdras. Mestre Aurélio esclareceu que, em torno desses pórticos, antigos filósofos reuniam-se para discutir questões da vida.

    3)obrigado Pimentel.Boa aula da História Parisiense.

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    1. Moacir Pimentel01/06/2017, 07:53

      Vizinho Antônio,
      Quando me deparo uma palavra misteriosa também só sossego quando a decifro. Ainda bem que na era da modernidade temos os nossos
      “ Pais dos Burros” instalados no computador (rsrs)
      Mas eu nunca tinha pensado na função filosófica das exêdras, que faz todo o sentido por causa dos bancos e da quase onipresente proximidade que elas tinham das sombra e água frescas tão propícias à reflexão. As exêdras são frequentes nas antigas vilas romanas - como nas de Tivoli ! – e se você olhar com atenção verá que a semicircular Fontana di Trevi é o mais perfeito exemplo desse estilo arquitetônico.
      Abração

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  4. Alexandre Sampaio31/05/2017, 19:55

    Pimentel,
    Aprendi hoje mais sobre o Jardim das Tulherias do que quando o atravessei da entrada principal na Praça da Concórdia até o Museu do Louvre. Excelente post.

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    1. Moacir Pimentel01/06/2017, 08:00

      Sampaio,
      Alguma coisa tem que ficar para a próxima viagem, não é mesmo? Da próxima vez que for àquelas paragens dê uma boa olhada nas garotas do Maillol no Jardim do Carrossel. Obrigado pelas generosas palavras de incentivo.

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  5. Olá Moacir,
    Seu post é tudo que disseram, é uma aula, é um roteiro, é uma "êxedra" onde o blog se reune para saber das coisas belas de Paris. O professor Antonio é quem disse!
    Das estranhezas não sei qual é da Louise Bourgeois.
    Vamos passear mais por esse belo parque?
    Até então.

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    1. Moacir Pimentel01/06/2017, 08:10

      Caríssima Donana,
      Acho que voltaremos ao Jardim mais uma vez porém com um objetivo menos artístico.Ufa! Os leitores devem estar cansados dessas andanças.
      O seu comentário é muito oportuno pois talvez no texto eu tenha me expressado mal. O Jardim das Tulherias reconhecido pelas suas antigas tradição e vocação de homenagear a criação artística de todos os tempos - as obras do Maillol e a pirâmide de Pei não me deixam mentir - resolveu, na virada do milênio , iniciar um diálogo mais vívido e audacioso com artistas do século XX alguns então ainda vivos - como foi o caso da Louise e da Magdalena com as suas esculturas de Mãos – e fugir de verdade do academicismo do património artístico e histórico da cidade para expor praí uma dúzia de obras polêmicas e absolutamente contemporâneas. Infelizmente temos um limite de fotos no Blogger que nesse artigo eu mais do que extrapolei, graças à paciência do Senhor Editor.
      Mas a senhora poderá vê-las se desejar, é claro, em uma pesquisa de imagens : Le Bel Costumé de Jean Dubuffer, La Musicienne de Henri Laurens, os Personagens de Étienne Martin, a Mulher Reclinada de Henry Moore, o Primo Piano de David Smith, o Tabuleiro de Xadrez de Germaine Richier e por aí vai.
      No caso específico da Louise as esculturas se chamam Welcoming Hands e moram no terraço do Jeu de Paume com vistas para a Concórdia. Elas nada têm a ver com a Mamam (rsrs) pois são obras pequenas e, na minha opinião, estão expostas da forma errada.Em cima de cubos de pedra passam despercebidas inclusive por aqueles que entram pelo portão da Praça especificamente para visitar o Museu.

      https://s-media-cache-ak0.pinimg.com/originals/a6/98/50/a6985016d6e0e9fe6403f0117b709d37.jpg

      "Até mais"

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  6. Márcio P. Rocha31/05/2017, 20:37

    Talento para escrever, ótimas fotografias e boas lembranças. Não tem como a receita dar errado.

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    1. Moacir Pimentel01/06/2017, 08:11

      Márcio,
      Concordo sobre as boas lembranças.
      Abração

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  7. Francisco Bendl01/06/2017, 20:40

    Pimentel,

    O dia de hoje para mim foi problemático.
    Não atrasei o meu comentário sobre mais este artigo excelente de tua autoria porque eu quis, mas por motivo de força maior.

    Assim sendo, leva em conta os elogios que sempre registrei sobre as as tuas obras, pois os teus textos são verdadeiras obras de arte, e peço que compreendas eu hoje estar sendo lacônico.

    Um forte abraço.
    Saúde e paz.

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    1. Moacir Pimentel02/06/2017, 18:22

      Bendl,
      Agradeço-lhe de coração pelas lembrança e palavras generosas.Tenha um bom final de semana junto aos seus.
      Abração

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