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18/05/2017

A China e o Mar - O Grande Khan

imagem de www.viajarentreviagens.pt

Domingos Ferreira
          Aqui o soberbo Império que se afama
          Com terras e riqueza não cuidada.
          Da China corre, e ocupa o senhorio
          Desde o Trópico ardente ao Cinto frio.
Os Lusíadas, canto X, estrofe 129 (1)

Xian é uma antiga capital da China, de quando o colosso foi unificado, pela primeira vez, por Qin Chi Huang, fundador da Dinastia Chin, no século III A.C. . Ela fica na parte central do país, e fazia o papel de último bastião da Rota da Seda, ainda em território chinês.
Esse extraordinário comércio se estendia para o Oeste por sete a oito mil quilômetros. As viagens eram no lombo de camelos e burros, em infinitas caravanas. Elas cruzavam toda a Ásia e o Oriente Médio, durante meses, ao longo da latitude 40º N, entre o Deserto de Gobi, a Mongólia e o gelado Tibet, além do trecho ao Sul do Mar Cáspio. Os destinos eram as costas do Leste Mediterrâneo, onde as cargas embarcavam em navios gregos e fenícios, sendo distribuídas pelos portos em torno dos quais evoluía a civilização ocidental.
O principal destino das mercadorias era o porto de Óstia, onde entravam as embarcações abastecedoras da grande Roma Imperial. As matronas e jovens da elite romana, por razões óbvias, eram apaixonadas pelos produtos chineses, tais como sedas, objetos de bronze de qualidade, cerâmica fina, leques, unguentos cosméticos e medicinais, perfumes e bijuteria refinada.
O comércio chinês com o Ocidente, desde a Antiguidade, também se fazia por mar, a partir de portos na costa da China, navegando pelos arquipélagos do Sudeste asiático, cruzando o Índico, atravessando o Mar da Arábia, e atingindo o Estreito de Ormuz, nas portas do Golfo Pérsico. Dali, para o Mediterrâneo, era necessário desembarcar a carga, montar caravanas e percorrer o trecho final, por Bagdá e terras persas, até os portos daquele mar.
Todo esse sistema ampliou-se e foi sofisticado ao longo dos séculos, porém só se tornou conhecido no Ocidente com as viagens de Marco Polo no século XIII. Elas ocorreram durante o extraordinário domínio mongol, durante pouco mais de um século e meio, que abrangeu as dinastias Song (1206-1271) e Yuan (1271-1368), na China, formando o maior império contínuo já existente sobre a face da Terra.
Esse gigantesco reinado foi conquistado por Gengis Khan, e seus descendentes, desde 1206 até meados do século XIV, e mantido através das capacidades militar, política e gerencial, e da mão de ferro dos Khans da Mongólia. No auge do seu poder, o Império foi consolidado em diversos “canatos” desde o Mar da China, e incluindo o centro da Ásia, o Norte da Índia, até as regiões do Leste Mediterrâneo, a Turquia e partes de territórios da Rússia, Polônia e Germânia, no centro da Europa.
Niccoló e Matteo Polo, pai e tio de Marco, abastados comerciantes de Veneza, eram audaciosos empreendedores ao longo da Rota da Seda. Nessa condição, na cidade de Bukhara, no Uzbequistão, tornaram-se conhecidos por Hulagu Khan, governante da região e irmão de Kublai Khan, ambos netos de Gengis Khan. Foi ele quem insistiu na ida dos venezianos até Cambaluc (Pequim), para serem apresentados ao Imperador Kublai Khan (1260 a 1294), grande curioso sobre a Europa, de onde quase nada sabia e nenhum natural conhecera, até então.
Kublai Khan (fotografia Domingos Ferreira)

Os irmãos Polo foram recebidos pelo poderoso Khan em seu palácio de inverno, em 1266. A empatia entre eles foi imediata. Kublai Khan outorgou-lhes a condição de nobres da corte, onde permaneceram por cerca de dois anos. No retorno a Veneza, eles foram portadores de uma carta e presentes do Grande Khan para o Papa Gregório X, além de muitas mercadorias valiosas para seus próprios negócios.
O grande sucesso da primeira viagem fez com que Niccoló e Matteo logo retornassem a Pequim, onde chegaram em 1275. Dessa vez, eles levaram Marco Polo, filho de Niccoló, com dezessete anos de idade. O jovem tinha recebido a melhor educação disponível em Veneza e era muito atilado, energético e comunicativo. Kublai Khan encantou-se com ele e, em pouco tempo, o nomeou seu embaixador, fazendo-o viajar por várias regiões do Império, em diversas missões de crescente importância.
O envolvimento dos três europeus com o incansável Kahn foi tal que eles permaneceram em sua corte por mais de duas décadas, prestando valioso aconselhamento político e na atividade de comercio exterior, do que muito entendiam. Durante tal período, Kublai Khan, tendo conquistado a península da Coréia, em 1258, decidiu invadir o Japão.
Antes do emprego militar da pólvora, os mongóis conseguiram conquistar um imenso império devido à excepcional destreza de seus combatentes, à simplicidade tática e à alta velocidade e surpresa das evoluções. O guerreiro mongol conduzia seu pequeno cavalo, da forte raça “takhi”, sem o uso das mãos. Assim, elas ficavam livres para o emprego de um poderoso arco, cujas flechas, especialmente balanceadas para penetrar nos coletes e armaduras dos inimigos, devastavam as tropas inimigas, com grande rapidez e em todas as direções.
Quando decidiram invadir o arquipélago do Japão, os mongóis não tinham qualquer experiência na guerra do mar. E pior, seria necessário executar uma gigantesca operação anfíbia, a mais complexa dentre todas aquelas que, desde sempre, se travam no ambiente marítimo. A intenção inicial era invadir o território japonês pelo Sul, a partir da extremidade da península da Coréia.
Em decorrência disto, houve um longo período de preparação, iniciado em 1266, no qual foi construída, em estaleiros coreanos, uma esquadra de trezentos (!) navios e centenas de embarcações menores. Além disso, arregimentou-se um exército inexperiente, constituído por guerreiros mongóis, chineses e coreanos.
Terminados os preparativos, em novembro de 1274, a esquadra chinesa, transportando cerca de 23.000 guerreiros, navegou a pequena distância de cerca de 200 milhas, entre o solo coreano e o território japonês. Depois de conquistar, no caminho, a ilha de Tsushima, ela penetrou na baía de Nakata, no Distrito de Kyushu, próximo de Nakasaki, bem ao Sul do arquipélago nipônico.
O desembarque desse enorme contingente e da logística de apoio encontrou forte reação dos japoneses, já sabedores das intenções do inimigo. Travou-se, então, a histórica “Primeira Batalha de Nakata”, que contribuiu para a consolidação do império japonês. Nela, os mongóis tiveram vantagem inicial, porém acabaram imobilizados pelos samurais e, com problemas de comando e coordenação, tiveram de recuar para seus navios. Por capricho do Destino, a região foi varrida por um forte tufão, que destruiu muitos navios dos invasores, fazendo-os abandonar a empreitada.(2)
 
Ishoo Wada - Kamikaze - O Vento Divino
Kublai Khan, inconformado com a derrota, decidiu efetuar outra invasão, na mesma região ao Sul do Japão. Decorreu, então, um período de seis anos em que ambos os lados se prepararam melhor para a anunciada nova empreitada. Os japoneses reforçaram suas defesas, em vários pontos da costa, e aumentaram, equiparam e treinaram melhor as suas forças. Já os mongóis, construíram uma gigantesca força naval, com cerca de 4.000 (!!!) navios e embarcações, nos estaleiros da Coréia e da costa Norte da China.
Assim, no verão de 1281, talvez a segunda maior esquadra existente até hoje lançou cerca de 120.000 combatentes nas praias da região pré-determinada e arredores.(3) A histórica “Segunda Batalha da Baía de Nakata” durou várias semanas, sem definição. Até que surgiu, novamente, um furacão “kamikaze”, e o “vento divino” decidiu a favor dos japoneses. Os mongóis se retiraram derrotados e Kublai Khan desistiu de conquistar o Japão, que saiu revigorado e unido do magno evento.
Marco Polo, seu pai Nicollo e o tio Matteo vivenciaram todas essas experiências na corte de Pequim, onde permaneceram até 1292. Um envelhecido Kublai Khan, que viria a falecer pouco depois, os encarregou de uma última missão política no retorno à Europa. Tratava-se de acompanhar uma princesa mongol prometida em casamento a um príncipe persa, na fronteira Oeste do enorme império mongol.
Para tanto, a princesa e a enorme comitiva embarcaram em uma frota de quatorze navios (dois mil tripulantes), que partiu, em 1293, de Hang Zhou(4), na costa da China, e se dirigiu ao estreito de Malaca, entre Indonésia e Malásia. Ali, ficaram por alguns meses, aguardando os ventos favoráveis das monções .
Em seguida, navegaram no Oceano Índico, contornaram o Sri Lanka Ceilão) e a Índia, atravessaram o Mar da Arábia e penetraram no Golfo Pérsico, onde fundearam em Ormuz. Nessa cidade, entregaram a princesa ao seu futuro consorte. Em seguida, organizaram uma grande caravana e trilharam um conhecido roteiro, via Trebizonda, Armenia e Constantinopla. Finalmente, chegaram a Veneza em 1295, vinte e quatro anos depois da partida.
Marco Polo, então com quarenta anos, logo se envolveu em um conflito menor entre Veneza e Genova, no comando de um navio a remo que comprara e aparelhara. Nesse entrevero, foi derrotado e aprisionado pelos genoveses durante três anos. Em uma notável coincidência, seu companheiro de cela foi Rustichello de Pisa, prolífico e conhecido escritor de histórias lendárias, com boa aceitação.
Das conversas entre os dois presos, surgiu um texto volumoso, escrito em francês provençal, intitulado “O Livro das Maravilhas”, também conhecido por “A Descrição do Mundo”, narrando as aventuras de Marco Polo nas décadas que passara na China. Esse manuscrito, reproduzido em inúmeras cópias, fez grande sucesso na Europa. E, ao surgir a imprensa com Gutemberg, em 1455, ele foi impresso em sucessivas tiragens, em diferentes línguas. (5)
A narrativa do extraordinário viajante veneziano trazia tantas histórias aparentemente fantásticas, que levou muitos leitores a atribuí-las à imaginação fértil do escritor Rustichello. Esse entendimento não se confirmou em diversas pesquisas posteriores, inclusive do século XX, as quais confirmaram a veracidade da maior parte da narrativa de Marco Polo.
Mesmo assim, o livro incendiou a imaginação e a cobiça de cabeças coroadas e de exploradores europeus. Um deles tinha seu exemplar - preservado até hoje - com muitas anotações em diversas páginas. Era um genovês teimoso e destemido, chamado Cristoforo Colombo, que veio a conhecer o texto mais de cem anos depois de ter sido escrito...

Observações
(1)      Cinto frio - Círculo Polar Ártico;
(2)      Tufão (Tai Fun) - chamado de “kamikase” (“vento divino”)
(3)      O desembarque aliado na Normandia, na II Guerra Mundial, empregou cerca de 5.000 navios e embarcações e colocou 160.000 homens em terra, em junho de 1944;
(4) Existe uma estátua de Marco Polo no porto de Hang Zhou;
(5) Gutemberg imprimia em papel chinês, aperfeiçoado desde o século  II A.C.; o uso de tipos móveis (argila e madeira) também ocorria  na China, porém limitado pelos milhares de ideogramas; a grande inovação européia foi o uso de tipos metálicos fundidos, em escrita linear, com 26 letras;


6 comentários:

  1. Wilson Baptista Junior18/05/2017, 15:07

    Domingos, um começo prometedor para a trilogia sobre o Celeste Império com que você vai nos brindar.
    O "Livro das Maravilhas" do Marco Polo foi um dos meus companheiros de infância e adolescência, e me despertou o apetite por muitas outras leituras sobre o Oriente.
    Ficamos à espera :)

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    1. Estimado amigo Mano
      Como ficou bem claro, as viagens de Marco Polo abriram um novo mundo para os europeus e , curiosamente, também para os chineses. A segunda parte da trilogia, intitulada "Os Navios do Tesouro",apresenta a espetacular expansão do comércio marítimo da China no Oceano Índico,no século XIV com navios várias vezes maiores que as acanhadas naus e caravelas europeias. Foi um fenômeno quase desconhecido no Ocidente até recentemente.
      Chegaremos lá.
      Um grande abraço.
      Domingos

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  2. Moacir Pimentel18/05/2017, 18:17

    Muito bom, Domingos. Parabéns. Por acaso estou escrevendo sobre Sri Lanka, a terra pela qual , segundo os relatos de Rustichello , Marco Polo se encantou descrevendo-a como " a ilha do seu tamanho mais bela do mundo". O Livro das Maravilhas foi aquele de cabeceira do Colombo e da minha e o Marco Polo foi um dos heróis da minha meninice junto com o Vigilante Rodoviário (rsrs) Até hoje aquelas narrativas servem de modelo para a literatura de viagem e, não importa se diário de bordo ou ficção,revelaram à Europa o esplendor oriental aguçando a curiosidade dos exploradores, um solo fértil para a semente da era das descobertas.
    Mas a maravilha das maravilhas, a maior das "viagens", é mesmo a boa leitura que o grande Gutemberg - a quem fui apresentado por F. Acquarone noutro livro de nome Os Grandes Benfeitores da Humanidade - popularizou e você nos oferece a cada post.
    Gostei de ler sobre o Kublai Khan e os cavalos da raça takhi , sobre as Batalhas de Nakata e os ventos divinos, o tai fun, magistralmente descrito pelo escritor americano James Clavell nas pretinhas do seu romance Tai Pan. Finalmente foi bom entender porque os ventos kamikazes viraram metáfora para os pilotos japoneses na Segunda Grande Guerra.
    Obrigado

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    1. Estimado Moacir
      Achei notável você ter tido Marco Polo e o Vigilante Rodoviário como heróis na infância.Juntos!!...
      Assim como seu interesse atual pelo Sri Lanka, onde existe um sistema de reserva e distribuição de água, construído por um imperador,há muitos séculos atrás, que eliminou o efeito recorrente das terríveis secas de então. Uma espécie da nossa atual transposição do São Francisco.
      A primeira e a segunda parte desta trilogia têm o objetivo
      de demonstrar, na prática, a quase infinita capacidade do povo chinês de, quando convocado pela autoridade mandante, juntar esforços para realizar coisas inimagináveis.
      É claro que existe a Muralha da China para provar isto. Mas ela é feita de pedra e é estática.
      Daí vem a terceira parte.Na cabeça de um marinheiro, acostumado com as condições eternamente mutantes e de eventual extrema violência do mar, exigindo verdadeiros milagres de engenharia, é muito complicado entender e aceitar como os chineses conseguiram construir e operar esquadras de milhares de navios muito antes dos europeus.
      Tudo isso desemboca no que eles estão fazendo atualmente, em termos de esquadras para dominarem os mares. Foi o que fizeram os espanhóis e os ingleses em diferente épocas. É o que os Estados Unidos dispõem agora. E no futuro próximo, em duas , três gerações adiante?
      Onde entra o Brasil nessa equação, felizmente isolado em um canto do mundo e cercado de riquezas e problemas da América do Sul? E com a África em frente?
      Um forte abraço.
      Domingos

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  3. 1) Obrigado pela ótima aula sobre o então Celeste Império = China.

    2)Estou na primeira fila, aguardando as próximas aulas, com toda atenção. Grato !

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    1. Prezado Antonio
      É uma grande coincidência você e eu termos escrito artigos que falam da "Rota da Seda". A propósito,ela passava na cidade de Tashkent, sobre a qual li que era muito quente. e recebeu este nome de comerciantes portugueses,que repetiam "está quente" quando lá estavam.
      Muito obrigado por "estar na primeira fila". Há muito que aprendermos sobre a China. Vou tentar fazer meus netos estudarem mandarim.
      Um grande abraço.
      Domingos

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