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31/03/2017

Paris é uma Festa

La Closerie des Lilas - 1909 (wikimedia commons)


Moacir Pimentel
La Closerie des Lilas, o café parisiense preferido de Ernest Hemingway, foi um dos primeiros a funcionar na região de Montparnasse, talvez pela proximidade das universidades e dos salões de dança. Além de ser um dos pioneiros no bairro era o café predileto dos poetas, inclusive de Paul Fort, também chamado de O Príncipe, que todas as terças feiras à noite lá organizava uma reunião com amigos para declamar seus versos, cantar e fazer novas amizades.
Essas reuniões não atraíam somente os frequentadores habituais dos cafés da rive gauche, mas começaram a despertar também o interesse dos artistas e literatos de Montmartre, servindo como porta de entrada para que Picasso e a sua turma se ambientassem nessa atmosfera mais sofisticada, até então desconhecida por eles.
Nos anos vinte do século passado ainda não tinha sido construído o terraço envidraçado atual, e as mesas do Café debaixo dos toldos e de frente para o bouvelard Montparnasse não eram frequentadas por pessoas famosas, que queriam ser vistas e noticiadas, como acontecia com o pessoal que circulava, a várias quadras de distância, pelos Cafés Dôme e La Rotonde e Le Select.
A proximidade do café - cujo nome foi inspirado pelo jardim de lilases murado que fora um diacom o pequeno apartamento que Ernest Hemingway alugara em cima de uma barulhenta serraria na Rua Notre- Dame des Champs e a tranquilidade do local possibilitavam ao escritor, como era de sua preferência, uma certa privacidade para escrever seus pensamentos.
Hemingway gostava muito de estar ali no encantador e aconchegante La Close, onde o outro profeta da era do jazz, F Scott Fitzgerald, leu para ele o seu livro O Grande Gatsby.
Fitzgerald muitas vezes interrompia o trabalho do Papa para confessar ao amigo, por exemplo, que costumava fazer alterações nos contos que julgava bons demais, piorando-os para que se tornassem comerciais e pudessem ser publicados pelos jornais e revistas.
Hemingway descreveu não o café de seu encanto mas como se sentia bem naquelas paragens onde ainda hoje se pode ver, em destaque, o seu canto favorito, a sua foto e, no cardápio, um steak au poivre que leva seu nome porque supostamente teria sido seu prato predileto.
A estátua do Marechal Ney - de bronze esverdeado sobre um pedestal de pedra a apenas uma dezena de metros do Café - chamava a atenção do escritor lá de pé, majestosa, olhando indiferente para os bulevares, as pernas abertas, o braço erguido desafiadoramente.
O marechal, que fora um dos generais de confiança de Napoleão, virou traidor para a monarquia restaurada depois que, tendo prometido trazer o ex-imperador de volta a Paris numa gaiola de ferro, foi enviado para rastrear Napoleão após sua fuga da ilha de Elba.
Sucede que ao encontrar Bonaparte, Ney ajoelhou-se e ofereceu-lhe o comando de seu exército de sessenta mil homens. Juntos lutaram e perderam a batalha de Waterloo e, por sua ação traidora, os realistas executaram o marechal em dezembro de 1853, exatamente na Rua de l'Observatoire, onde se encontra o seu bronze. 
imagem Mbzt - 2010 (Wikimedia Commons)

Hemingway escreveu sobre como certa vez, estando ele a caminho de casa, resolveu parar no Closerie des Lilas para ver o seu velho amigo e o encontrara “tão sozinho ali com sua espada desembainhada” brilhando na luz do final da tarde com as sombras dos ramos das árvores dançando no verde escuro do bronze:
Lembrei-me de seu fiasco em Waterloo e concluí que todas as gerações eram perdidas, sempre haviam sido e sempre haveriam de ser”.
Olhando para o marechal Michel Ney, Hemingway pensou na valentia dele lutando pessoalmente na retirada de Moscou e na fidelidade canina que dedicara a Napoleão e lembrou da sua própria amizade com Gertrude Stein, a sua advogada no mundinho da literatura parisiense de quem começara a divergir. O jovem Hemingway concluiu então que todas as gerações de alguma forma perdem alguma coisa.
Então ele brindou ao marechal, e prometeu a si mesmo ser amigo de Gertudre e honrá-la só que nos termos dele...
Enquanto eu puder e com a ajuda de Deus e de Mike Ney! Mas para o inferno com essa conversa dela de geração perdida" (rsrs)
Aqui é preciso um tanto de contextualização. Uma das frases mais conhecidas da escritora Gertrude Stein é justamente aquela na qual ela se refere à geração de escritores e artistas franceses e expatriados que viveu em Paris entre as Guerras Mundiais:
Todos vocês, jovens que serviram na guerra são uma geração perdida
Também Scott Fitzgerald nos seus escritos ecoou o mesmo sentimento e versou sobre uma geração criada com valores e perspectivas que já não significavam quase nada no mundo do pós-guerra, uma geração que precisava se reencontrar:
“Era uma nova geração que cresceu para encontrar todos os deuses mortos, todas as guerras travadas, toda a confiança no homem abalada.”
Hemingway, apesar da bravata, algum tempo depois pensou melhor e percebeu o quanto a frase de Gertrude era adequada para o romance O Sol Também se Levanta e, com alguma ajuda do Eclesiastes, cravou no livro:
Uma geração vai e outra geração vem e a Terra permanece para sempre.”
Mas não a fachada do La Closerie des Lilas. Hoje a área externa do Lilas é agradavelmente cercada por arbustos verdes, criando uma pitoresca área isolada onde se encontram algumas mesas, das quais acho que Hemingway teria gostado, porque as sebes teriam impedido que ele fosse visto sentado ao ar livre enquanto criava depois de uma boa noite de sono.
Eu já tinha aprendido a nunca esvaziar o poço da minha escrita, mas sempre parar quando ainda havia algo lá na parte mais profunda dele e deixá-lo transbordar à noite das fontes que o alimentavam.”
Em dias e noites de clima agradável Hemingway sentava-se nas mesas quadradas de mármore, sem quaisquer paredes de vidro, e desfrutava o ar livre. Lá, com seus dois lápis curtos escrevia, saboreando o cheiro da madrugada e os sons: dos garçons varrendo e esfregando o Café, dos cascos dos cavalos, das rodas sobre as pedras do bulevar à sua frente.
Em seu bolso direito Hemingway carregava sempre uma castanha e um pé de coelho, ambos esfregados tantas vezes para dar sorte que a castanha adquirira o preto do ébano e o pé do coelho perdera a pele.
As altas árvores que cercavam o café para lhe dar sombra e um ar campestre eram castanheiros no começo do século. Hoje são plátanos. Nenhuma carroça puxada por cavalos ressoa sobre os paralelepípedos e tudo o que se escuta vindo da avenida é o zumbido constante do trânsito, mas ainda há lilases nos canteiros de madeira em volta do pátio e das mesas.
Lá dentro, ao longo do bar e em todas as mesas moram pequenas placas de bronze brilhantemente polido com os nomes gravados dos personagens literários e artísticos do passado que - dizem! - sentaram-se em cada uma delas.
A placa de Hemingway fica no bar, contrariando seus escritos nos quais ele se descreve muitas vezes em uma das mesas laterais, longe e à direita do bar com as costas para a parede e a visão plena do ambiente. Um lugar claro e bem iluminado de onde ele podia olhar por cima do ombro para a Avenida de l'Observatoire e mais além para o distante “verde dos Jardins de Luxemburgo”. E se deliciar observando as mulheres:
“Eu vi você, beleza, e você me pertence agora, não interessa quem você esteja esperando e se eu nunca irei te ver de novo, eu pensei. Você me pertence e toda Paris me pertence e eu pertenço a este caderno e a este lápis. Então eu voltei a escrever e mergulhei na história e nela me perdi (...) Então a história terminou e eu estava muito cansado. Li o último parágrafo e então eu olhei para cima e procurei pela garota e ela tinha ido embora. Espero que ela tenha ido com um homem bom, pensei. Mas eu me senti triste.”
Os cafés -creme são deliciosos e os garçons normalmente não apressam ninguém pois sabem que por ali a preguiça é contagiante. No almoço o Café é invadido por turistas mas antes da refeição da noite é frequentado por gente de todas as idades e ocupações, se bem que a maioria parisiense da gema.
Os fregueses sentam-se diante de suas bebidas lendo livros, jornais ou revistas, saboreando a luz âmbar de um dia minguante enquanto degustam um café, um copo de vinho ou talvez um pernod leitoso com sabor de anis, um estimulante agradável para celebrar o fim do dia.
É exatamente nessa hora, a do lusco-fusco, quando se a gente capricha na Dona Imaginação, ouve novamente os sons do passado: os clique, clique, clique de saltos altos e afiados na calçada, o ranger das cadeiras, o folhear dos jornais, o som sibilante da cafeteira, um balbuciar confuso de vozes, garçons tomando pedidos, bandejas de metal batendo levemente em mesas com tampo de mármore e o tilintar do vento contínuo nos vidros e Let’s Do It do Cole no piano.
A mesma música que é tocada nos cafés de Paris para todas as gerações. Todas elas colegas na falta de rumo daquela perdida nos anos vinte. De repente se pensa que deve ter sido essa a música de fundo que Hemingway ouvia enquanto escrevia sobre como Nick Adams pescara trutas no Michigan após a Primeira Guerra Mundial, a trilha sonora enquanto inventava a história do amor impossível de Jake Barnes e Brett Ashley em O Sol Também Se Levanta.
Sem dúvida, é a mesma música. Do tipo que parece ressoar uma riqueza histórica, uma civilização antiga, primaveras e verões e outonos vividos plenamente e escuridões invernais superadas. O jeito é pedir outro café-crème e um licor para encompridar um pouco mais o momento e nele não o jovem que Hemingway foi, mas aquele que, em algum lugar perdido dentre de nós, ainda somos.
Ernest Hemingway in Paris - 1924 (JFK Presidential Library)


Em 1956 Hemingway encontrou quase que por acaso, em um dos porões do Hotel Ritz, em Paris, uma mala que fora perdida pela primeira de suas mulheres, muitíssimos anos antes, com os cadernos de capas azuis nos quais ele diligentemente rascunhara durante aqueles primeiros anos vividos em Paris.
Tinha sido na Closerie des Lilas que Hemingway fizera todas aquelas anotações, rodeado pela fumaça de muitos cigarros entre uma xícara quente de café-crème e outra no interior da casa durante o inverno ou numa das mesas do terraço externo ou sob a sombra das árvores do pátio, olhando para a estátua do Marechal Ney.
Ele transcreveu lentamente tais cadernos e, em 1961, durante o período em que também trabalhou no romance-reportagem O Verão Perigoso, deu a compilação como concluída.
Todos aqueles rascunhos foram publicados postumamente em 1964, transformados no livro mais confessional de Hemingway, de nome Paris é uma Festa, nas traduções para o português e o francês mas que, no original em inglês ostenta o título de The Moveable Feast – a festa “móvel” ou “ambulante” em livre tradução.
O título original fazia referência aos feriados que mudam de dia conforme o calendário do ano como, por exemplo, o Carnaval e a Páscoa. Mas na realidade foi principalmente uma metáfora jocosa de Hemingway, para o sentimento de feriado permanente vivido por ele e por mais uma plêiade de intelectuais na Paris daquele tempo.
O título foi sugerido por um amigo de Hemingway, de nome Aaron Edward Hotchner – autor do livro Papa Hemingway, Um Relato Pessoal, por causa de uma conversa que os dois tiveram sobre a cidade durante as primeiras visitas de Hotchner à Paris:
Se você tiver a sorte de ter vivido em Paris, quando jovem, então onde quer que vá para o resto de sua vida, ela permanecerá com você, porque Paris é uma festa móvel".
O livro Paris é uma Festa é, entre todos os demais da lavra de Hemingway, aquele que mostra a relação vida versus obra mais explícita. O próprio Hemingway adverte no início do livro:
"Se o leitor preferir, este livro pode ser considerado como ficção. Seja como for, ficção ou não, há sempre a possibilidade de que o livro possa iluminar o que foi escrito como fato."
As páginas do livro nos presenteiam com as memórias de Hemingway dos seus anos em Paris mas nos surpreendem pelos sentimentos contraditórios que ele cultivava por alguns dos convidados da festa e pelo detalhamento seco, duro e límpido com que ele relata momentos, fatos, pessoas e situações, que nos permitem visualizar, sentir e - porque não dizer? - viver o que Hemingway viveu.
 Sem dúvida, o livro é uma incrível fotografia da Paris dos anos vinte, onde conviveram e criaram alguns dos maiores escritores e artistas do século XX.
O encanto da obra - que não é absolutamente o melhor trabalho de Hemingway! - é que o autor nos faz sentir parte da tchurma. É bom reconhecer, nas páginas do livro, entre os amigos do autor quando ainda eram reles mortais em vez de verbetes da Wikipedia, os hoje lendários Gertrude Stein, Ezra Pound, Scott Fitzgerald, Ford Madox, James Joyce, Henry Miller, T. S. Elliot, Aleister Crowley, John Dos Passos e muitas outras figuras polêmicas e brilhantes.
Nos primeiros dos anos vinte nenhum desses gigantes literários sabia quem era Ernest Hemingway nem muito menos que ele estava na cidade, mas antes da década acabar Paris o conheceria muito bem. E essa conjunção de influências literárias que estava prestes a acontecer mudaria para sempre a topografia da literatura americana e mundial.
Papa Hem nos faz, em Paris É Uma Festa, observações e relatos pessoais e até íntimos sobre todos esses gênios imortais em encontros e desencontros vivenciados nos bares e hotéis e restaurantes que todos frequentavam, nas ruas por onde caminhavam, nos locais onde se divertiam e trabalhavam.
A menos de dois quarteirões da mesa de Hemingway no Café, o que restara de Charles Baudelaire e Guy de Maupassant dormia na paz do cemitério de Montparnasse, enquanto que, a cinco minutos a pé do Boulevard Raspail, Gertrude Stein e sua fiel amiga Alice Toklas viviam sua relação homossexual.
Aliás, naquelas páginas ficamos amigos de infância de Gertrude Stein, pois Hemingway dedicou um capítulo inteiro a essa senhora à frente do seu tempo, uma locomotiva cultural ferina e implacável, mas que recebia o conterrâneo de braços abertos em seu belo apartamento atrás do Jardim de Luxemburgo.
Eram famosos os regabofes oferecidos pela americana aos sábados, reunindo escritores e artistas em volta da sua mesa. A comida era farta e cortesia da casa e a frequência alta e diversificada, se bem que eram constantes as presenças de Picasso, Apollinaire, Max Jacob, Braque, Vlaminck, Matisse, Derain, Scott Fitzgerald e Hemingway entre vários outros, que compartilhavam muito talento e nenhuma grana.
Em uma mesa vizinha à do Papa Hem no Closerie, o poeta Ezra Pound - “homem íntegro e sempre disposto a ajudar a todos” - leu um manuscrito que era “de um jovem com os nervos despedaçados a caminho de uma cura de descanso em Lausanne”. O poema era da lavra de Tom Eliot e acabou sendo batizado de Terra Devastada.
A menos de duas quadras do modesto apartamento de Hemingway, James Joyce comemorou as revisões finais de seu manuscrito Ulisses na livraria Shakespeare and Company.
E isso foi antes da bela modelo, pintora e atriz chamada Alice Prin tornar-se a musa dos pintores e escritores e escultores franceses da época, adotando o nome de Kiki e sendo coroada Rainha do bairro. Kiki de Montparnasse é famosa como a musa e companheira do genial Man Ray, o fotógrafo, cineasta, pintor e anarquista responsável por grandes inovações artísticas na fotografia, mas foi, por direito próprio, uma artista muito talentosa. 
Man Ray - Violon D'Ingres (Alice Prin) - 1924
Os dias de trabalho e as noites de prazer de Hemingway eram compartilhados por Luis Buñuel, Anaïs Nin, Cole Porter, todos os cubistas e o surrealista Salvador Dalí. Foi essa concatenação de oportunidades literárias e artísticas que fez o jovem Hemingway e tantos mais sentir que Paris era o centro do mundo.
É impossível não sentir atração pela Paris de Hemingway, descrita no período entre as guerras mundiais. A narrativa é tão fantástica que nos faz sentir como parte da família Hemingway, amigos do autor, bebendo café e fumando e até sentindo fome junto com ele, perdendo aquela luta de box no Clube Americano na qual apanhou do adversário e do “juiz” Fitzgerald, pendurando contas nos bistrôs, curtindo as corridas de cavalos onde às vezes ganhava um bom dinheiro mas nas quais se viciou e que abandonou ao perceber que o afastavam da literatura.
De certa forma é inimaginável que alguém tenha convivido com todas essas pessoas célebres de uma vez e, se isso fosse uma obra de ficção, beiraria o ridículo.
A escrita de Hemingway é uma delícia despretensiosa que nos leva àqueles dias e nos faz sorrir a cada capítulo, dos quais os três sobre Scott Fitzgerald e sua mulher Zelda são o melhor da festa, pois desvelam a aparentemente ambígua relação do autor com o colega Scott Fitzgerald, outro escritor indispensável da literatura americana.
Hemingway conheceu F. Scott Fitzgerald no Café Dingo na Rua Delambre. Fitzgerald morava perto da Étoile e muitas vezes ia ao Bar Ritz, onde os amigos bebiam e jogavam conversa fora. Hoje o bar principal no Hotel Ritz ainda é conhecido como o Bar Hemingway. Só estive uma única vez na vida naquelas paragens onde os mortais escolhem o que vão beber pela coluna de preços à direita. Só pude saborear um café e um licor mas fiz questão de homenagear a biografia em pauta: foi uma poderosa variante verde do Chartreuse. Timtim!
À medida que a leitura da Festa avança, Fitzgerald vai revelando-se cada vez mais neurótico, obsessivo e hipocondríaco, talvez como uma reação à natureza controladora da mulher Zelda, que odiava vê-lo escrevendo. Uma relação complicada!
Entre outras intimidades, Hemingway nos conta, como se fossemos amigos de longa data, que Fitzgerald casara-se virgem, que era muito inseguro do seu desempenho sexual e atormentado de amor por Zelda de quem tinha ciúmes imensos pois ela já o havia traído.
Ao mesmo tempo Hemingway descreve a genialidade do amigo com admiração e quase ternura:
“Seu talento era tão espontâneo como o desenho que o pó faz nas asas de uma borboleta. Houve uma época em que ele tinha tanta consciência disso quanto a borboleta, não ligando para o fato de que seu talento podia apagar-se ou desaparecer de todo. Mais tarde começou a preocupar-se com as asas feridas e sua estrutura; aprendeu a refletir, mas já não conseguia voar porque o amor ao voo o abandonara. Restava-lhe apenas as lembranças dos dias em que voar fora um ato natural”.
Ele acreditava que o talento de Fitzgerald era prejudicado por Zelda e, pelo menos nas suas pretinhas, Hemingway desenvolveu por ela uma verdadeira antipatia.
Encontrei-me diversas vezes inserido no ambiente da história, como por exemplo, ao ler Hemingway tomando um xerez seco com o James Joyce e contando-lhe como planejava livrar-se das funções de jornalista e se entregar ao mundo da literatura... no Café Les Deux Magots. 
fotografia Robyn Lee - 2006 (Wikimedia Commons)

No livro quase que podemos ver como o autor fez, o ambiente, as mulheres, as mesas, o território da atriz e dama Diana Cooper, da poetisa Nancy Cunard, da pintora Tamara de Lempicka e last but not least da Vênus Negra Josephine Baker cuja dança erótica no palco do Teatro des Champs-Élysées em 1925 fez tanto sucesso que a americana se transformou, em seguida, na nua estrela das Folies Bergère.
Todas essas mulheres da geração entre as guerras, atraentes e polêmicas - americanas, britânicas, russas - tinham uma coisa em comum: o desejo de liberdades que antes eram inéditas. Elas abriram portas perigosas para a sua época e isso significava saias mais curtas, fumar em público e uma revolução sexual.
E, é claro, seguimos pelas pretinhas de Hemingway afora com todos os sentidos, experimentando os cheiros e sabores, os pratos e bebidas servidos por garçons mal-humorados dos cafés e restaurantes que ouviam Cole Porter day and night e night and day...
Como ler Hemingway sem perambular pelo triângulo formado pelo Café Flore, o Les Deux Magots e a Brasserie Lipp, todos na confluência do boulevard Saint-Germain com a Rua de Rennes? Como não fazer uma escala na banca de jornal que fica em frente e comprar uma revista qualquer com destino a uma mesa qualquer e a um bom café?
Como não sonhar provar na Brasserie Lipp os descendentes diretos daqueles salsichões que Hemingway devorava com mostarda de Dijon contornados por batatas e maionese de picles?
Como não salivar enquanto Hemingway e ses amis beliscavam – sem nenhuma pressa! – uma terrine de foie gras, enquanto davam cabo de todas aquelas garrafas de Chablis Laroche e esperavam pelas suas carnes brancas de mare e monti entre piadas e galanteios e olhares cobiçosos para as senhoras?
No final do capítulo – faminto! - o jeito é ir para a cozinha para tentar fazer se não o paillard de fazer inveja aos deuses pelo menos um substancioso fettucine de fazer chorar os mortais. (rsrs)
É impossível não tomar chá com Ernest e sua adorável esposa Hadley no Hotel d’Angleterre, na Rua Jacob. Ou não tomar pelo menos uma colher daquela sopa de cebola do Le Pré aux Clercs, na esquina das Ruas Jacob e Bonaparte. Faz bem à alma sair caminhando com o casal pela Bonaparte afora, atravessar o rio Sena pela Pont des Arts, para um sereno almoço de Natal no conhecido Café de la Paix, próximo à Ópera Garnier.
É divertido visitar através “da bic” de Hemingway tantos recantos no Quartier Latin, em Saint- Germain- des-Prés, na Rua Mouffetard. E o Jardim de Luxemburgo? Com a palavra o Papa Hem:
“… passar pelos jardins e depois ir ao Museu de Luxemburgo, onde se encontravam os grandes quadros que, em sua maioria, hoje estão no Louvre ou no Jeu de Paume. Ia lá quase todos os dias, por causa dos Cézannes e para ver os Manets, os Monets e os outros impressionistas”
Na real os Cézannes e os Manets se mudaram faz tempo para o Museu D’Orsay e os lírios d’água que Monet abstraiu da luz dos seus jardins em Giverny hoje cobrem imensos os salões ovalados da Orangerie.
Mas Hemingway tem o dom fantástico de nos fazer sentir à vontade na Paris dele, talvez porque lendo um Mestre a gente imagina - pessoas, coisas, lugares - e tem a crença bobóide de que se apropria do que foi imaginado e passa a ter a sensação de que tudo aquilo, está aqui dentro da gente e que portanto nos pertence.
Enfim, a Paris de Hemingway é tão irresistível quanto a escrita de seu autor.
Hemingway escrevendo num acampamento no Kenya - 1953 ( Look Magazine - Wikimedia Commons)

É interessante ler Hemingway descrevendo os seus problemas matrimoniais com a primeira esposa em Paris É Uma Festa:
“O problema ocorrera como começam as coisas verdadeiramente perversas: inocentemente! Uma jovem solteira se torna a melhor amiga de uma jovem casada e vai morar com o casal. Então, inconsciente, inocente, inexoravelmente termina por se casar com o marido da outra”.(rsrs)
A amiga da onça era a jovem e bela e chique editora de moda da Vogue Paris Pauline Pfeiffer, a segunda das quatro mulheres do escritor.
“Mas Paris era uma cidade muito antiga e nós éramos jovens e nada era simples, nem mesmo a pobreza, nem o dinheiro súbito, nem o luar, nem o certo e o errado, nem a respiração de alguém que estava ao seu lado à luz da lua”.
Depois de terem enfrentado juntos os anos mais intelectualmente profícuos e criativos e o período financeiramente mais inseguro da vida de Hemingway, em 1927 Hadley se divorciou dele depois de descobrir seu caso com a repórter de moda. Hemingway e Pauline Pfeiffer casaram-se apenas alguns meses depois e deixaram Paris para viver em Key West no extremo sul da Flórida no ano seguinte.
Eu visitei a casa nos anos setenta. Povoada pelos gatos descendentes da matilha do escritor a casa de amplas varandas fica próxima do farol. Cuja luz – dizem as más línguas –era fundamental para que o escritor encontrasse o caminho de casa depois de virar incontáveis copos em inenarráveis noitadas.
Paris é uma Festa é um livro curto, para ser degustado lentamente e relido algumas vezes ao longo da vida, que faz quem ama Paris a amar ainda mais, ao redescobrir a verdadeira e antiga essência da capital francesa que tanto inspirou e inspira grandes escritores e artistas.
“Paris não tem fim. Mais cedo ou mais tarde, não importa quem sejamos, não importa como o façamos, não importa que mudanças se tenham operado em nós ou na cidade, a ela acabamos regressando. Paris vale sempre a pena e retribui tudo aquilo que lhe damos”.
Foi verdade. Paris retribuiu o afeto de Hemingway e – pasme! – em uma de suas horas mais escuras após um dos piores momentos da história da cidade. 
imagem de Stéphanie Brulot / Hans Lucas, www.telerama.fr

No dia 7 janeiro de 2015, depois do assassinato de doze pessoas nos escritórios da revista satírica Charlie Hebdo que sangrou a tradição de liberdade criativa da França, o Tratado de Tolerância de Voltaire, escrito do século XVIII, alcançou o topo das listas de best-sellers no país.
Da mesma forma, depois dos ataques da sexta-feira negra 13 de novembro de 2015 quando, pelas ruas de Paris foram assassinadas a sangue frio cento e trinta pessoas e sangrada a tradição da joie de vivre da capital francesa, rolou o renascimento, cinquenta anos após a sua edição, do livro Paris é Uma Festa. De acordo com Le Monde, as vendas aumentaram de uma média de dez a quinze cópias por dia para chegar a quinhentas.
Parte do fenômeno se explica pelo simbólico e desafiante título do livro em francês: “Paris est une fête”. O certo é que nos dias que se seguiram aos ataques terroristas, o título em francês do livro tornou-se uma das duas hashtags campeãs no Twitter e nas mídias sociais, sendo a outra: “#Je suis en terrasse".
Sim, os parisienses ainda estão do lado de fora, sob o céu de Paris, nas esplanadas e terraços. Não se acovardaram e continuaram a beber e a comer nos restaurantes, cafés e bares em toda a cidade. E o livro “Paris É Uma Festa” se tornou um símbolo dessa resistência contra a brutalidade, orgulhosamente erguido nas mãos das pessoas, sobre as mesas dos cafés ou deixado entre as flores e velas que homenageavam os mortos nos locais dos ataques.
Mas o livro também renasceu porque nenhum outro autor não francês amou Paris tanto quanto Hemingway. Esse sentimento está em cada parágrafo de Paris É Uma Festa, mas também nas muitas cartas que o escritor enviou a amigos.
Estar de volta a Paris é excitante como o diabo!”
Depois dos atentados, os parisienses feridos precisavam reencontrar o amor por sua cidade e fizeram isso através dos olhos de Hemingway e de tantos outros estrangeiros que prestaram tributo à capital francesa ajudando a manter intacta a imagem brilhante que Paris tem no imaginário coletivo mundial.
Talvez Paris tenha se lembrado de Hemingway ao enfrentar o terrorismo porque foi muito amada por ele em meio a duas outras barbáries. Antes de completar vinte anos, Hemingway testemunhara muito sofrimento em uma guerra na qual teve uma experiência de quase morte e ferimentos graves e graças a qual sofreu de terrores noturnos com amigos que haviam morrido e/ou enlouquecido.
Sim, Paris era uma festa mas muitos daqueles seus convidados em 1920 já haviam atravessado um inferno. Foi esse inferno tanto quanto a joie de vivre que ajudaram a criar o escritor Ernest Hemingway empurrando-o para o pleno conhecimento de seus poderes e tornando-o a figura de proa da geração perdida.
Assim as páginas de Paris é uma Festa nos levam a uma introspecção sobre as inseguranças intelectuais da transição para a maturidade, sobre a submissão da expressão artística às necessidades financeiras e, principalmente, sobre a percepção um tanto dolorosa da passagem do tempo, que resta evidenciada quando Hemingway retorna a Paris e nota os espaços da sua juventude ocupados por outros artistas e movimentos insurgentes.
Um dos relatos parisienses que jamais esquecerei teve lugar na Rua des Grandes-Augustins, onde Picasso morou enquanto a era do jazz findava e ele pintava Guernica, com as tintas nubladas pela guerra.
Dizem que em 1944, quando Paris foi liberada, Hemingway dirigiu um jipe ​​do exército até o prédio de Picasso e pediu para ver seu velho amigo. Picasso estava no sul da França e o porteiro, é claro, não o deixou o “americaine” entrar. Ele então teria deixado na portaria uma caixa de champanhe em cuja tampa teria escrito: "De Hemingway para Picasso". Quando Picasso finalmente a abriu semanas depois, não encontrou o néctar dos deuses mas granadas de mão (rsrs)
Naqueles tempos difíceis, em meio à confusão reinante, a clareza, o senso de humor e de dura realidade de Hemingway devem ter feito bem a muita gente.
O mundo mudou e muita ação rolou desde o tempo que Hemingway escrevia no La Closerie des Lilas, mas ele continuou fazendo a vida toda exatamente o que recomendava nos seus escritos juvenis:
Escreva bêbado mas edite sóbrio” (rsrs)
A jornada cheia de confrontos e de tomadas de consciência experimentada pelos jovens personagens do livro póstumo de Hemingway pode servir como um abraço a todo jovem adulto que busca descobrir seu lugar no mundo moderno.
"Quando se é rapaz e se anda em companhia de homens feitos tem-se de estar preparado para matar, saber como fazê-lo e realmente ter certeza de que se é capaz de fazê-lo para que não se metam na sua vida."
Aprisionado no estereótipo do homem de ação literário romântico e viril, tão americano em essência e tão pouco propício ao desenvolvimento intelectual ou emocional, Hemingway amadureceu para se tornar um ícone - o benigno "Papa" da ficção americana - e também um homem muito doente e infeliz que não nos foi possível ler como lemos Walt Whitman gritando ao seu Criador:
"Velho, pobre e paralisado, eu Te agradeço".
Mas a caneta mágica do talento autêntico de Hemingway nunca o abandonou, nem o estilo simples, a descrição literal e factual do modo como as coisas são e a visão singular da experiência contemporânea. Hemingway foi o encontro perfeito de um temperamento e de um tempo, ambos igualmente moldados por agonias de destruição e morte.
Eu diria que tendo conquistado um lugar cativo na Literatura e no coração de milhões de leitores e iniciado em tantos jovens tanta paixão literária, tendo sobrevivido a duas guerras, a inúmeros ferimentos, bombardeios, quedas de avião e desastres amorosos, foi uma imensa pena e uma perda incomensurável que esse homem tenha posto termo à própria existência com um tiro de um fuzil de caça, quando tinha a minha idade.
A escrita de Ernest Hemingway bela e exata e com uma classe eterna e as suas incríveis histórias me acompanharão por toda a vida. Sempre li o autor com muito respeito acreditando que, tendo ele visto e compreendido o melhor e o pior da vida, usara seu talento para abrir o mundo a seus leitores.
Como um desses grandes e raros professores com quem a gente aprende a aprender e a ser homem, e mais, a ser humano.
Ernest Hemingway, mais até do que Paris, é a festa que jamais se esquece:
“Não existe um assunto para se escrever. Tudo o que você tem que fazer é sentar diante de uma folha de papel e sangrar.”



30/03/2017

Diálogos Conjugais

Vincent van Gogh - Deux Amants (estudo, 1888 - imagem wikimedia commons)

Francisco Bendl 
Completo este ano quarenta e sete invernos de casado! Uma vida.
Uma união estável, sólida, enraizada profundamente na verdade, sinceridade, e sem segredos de ambas as partes.
O tempo que estamos juntos trilhou o nosso caminho do diálogo, da compreensão, aplainando arestas, asfaltando o terreno, e deixando as curvas menos fechadas e mais fáceis de serem feitas.
Diante dessa estrada segura, bem estruturada, a comunicação com a minha esposa e dela para comigo tem sido quase que por telepatia, pois muitas vezes sabemos o pensamento de um e outro, o que se precisa em casa, o que ela quer, o que me pediria.
Viver casado e desta forma é um paraíso, onde as conversas são inteligíveis, apesar de se usar meias palavras mas, para um bom entendedor...
Nosso modo de estabelecer uma conversa saudável, franca, iniciou em plena Lua de Mel, e logo após a primeira noite!
- Chico, meu querido, tu fazes o café ou também não sabes nem isso?!
Passei a notar ultimamente que a Marli se preocupa até hoje com a minha profissão, por exemplo:
- Chico, por que não vais plantar batatas?!
Certamente ela demonstra o desejo que eu fosse agricultor.
Não tendo sido eu agricultor, ontem ela deu a entender que gostaria que eu fosse explorador!
- Chico, vai catar coquinho no asfalto!
Agricultor, explorador... semana passada ela me deu uma pista que me chamou à atenção, ser pecuarista.
- Chico, vai amolar o boi!
Amolar o boi, como se faz esse negócio, pensei com os meus botões!?
E como gosta de brincar de esconde-esconde:
- Chico, vê se estou na esquina!
Uma preocupação que ela tem comigo e até na frente de meus amigos e estranhos é com a minha higiene, pois ela seguidamente pede:
- Chico, vai tomar banho!
- Marli, já tomei um há pouco!
- Não importa, toma outro, então!
Assim, a nossa relação tem sido exemplo de um casal que se cuida mutuamente, se protege e se quer bem.
E tem sido tão insistente essa atenção que ela tem a respeito de que eu não seja um aposentado que vai jogar damas nos bancos da praça da cidade, que hoje ela foi enfática:
- Chico, por que não morres?!
Ou seja, ela gostaria que eu estudasse filosofia, metafísica, metempsicose, epistemologia.
A minha mulher é mesmo adorável!
Afora esta preocupação com a minha profissão ou que eu não pare, que faça algo, naturalmente ela fica apreensiva com o meu descanso:
- Marli, boa noite.
- Boa noite, Chico. Bem que poderias dormir para sempre, né?!
Essas gentilezas, precauções, receios, têm suas razões. A minha esposa sempre foi religiosa, não uma carola, fanática, mas crente em Deus.
Dia desses conversávamos sobre o temperamento de nossos filhos, e ela comprovou a sua fé, que me deixou emocionado:
- Chico, graças a Deus que MEUS filhos não puxaram a ti. Obrigada, meu Bom Senhor!
Eu sempre tive pela cônjuge uma grande admiração pela sua capacidade de causar surpresas, de me deixar perplexo, de me surpreender.
Ela faz um jogo fantástico, que não consigo descobrir como que ela mantém essa inteligência inata para me deixar com a pulga atrás da orelha.
Volta e meia ela me provoca:
- Aonde fui amarrar o burro!
E ela quer que EU saiba?!
Como ela é divertida!
A Marli sempre foi exemplo de relação amistosa, de se dar bem com as pessoas, aceitá-las como elas são, respeitá-las, e conseguiu ao longo da sua vida o devido reconhecimento desta qualidade de pacificadora que tem consigo:
- Chico, vê se me deixa em paz!
Gosto muito de provocá-la pedindo comidas especiais. Claro, faço para brincar porque não gosto de vê-la me atender os desejos, que imediatamente ela estaria disponível em ver a minha alegria:
- Marli, bem que eu queria para o almoço...
- QUÊ??!!
- Aquilo que fizeres, meu bem!
Devo ser compreensivo nesses casos, e não exigir tratamentos especiais, pois eu ficaria constrangido pela sua aflição em cumprir com as minhas vontades.
Agora, a Marli se revela na sua inquietude comigo com relação à minha diversão quando somos convidados para um aniversário, casamento, uma festa.
Ela me faz uma série de advertências, todas com o intuito de eu aproveitar as efemérides da melhor forma possível:
- Chico, presta atenção, por favor: Lembra, homem, vamos a uma festa! Nada de relatares as tuas histórias de viajante; nada de me contares aquelas piadas indecentes; nada de dares as tuas gargalhadas, que se ouve do outro lado da rua; nada de provocares os magros porque és gordo; nenhuma gota de álcool na boca; não te empanturres de refrigerante; não me detonas com os pasteizinhos; não te atraca nos doces; não me peças à dona da casa se ela fez maionese; nada de falares de corridas de carros e, principalmente, eu te proíbo de discutires sobre futebol e política!
- ??!!
- Nós vamos nos divertir!!!!
Deve ter sido na quarta ou na quinta-feira passada, que a Marli me fez o maior elogio que eu poderia receber depois de quase meio século casado com ela!
- Chico, queres saber de uma coisa?
- Sim, amada, do que se trata?
- Tu és um homem imortal!
- Eu?! Por quê?
- Porque não tens onde cair morto!